FOLHA DE SP - 21/07
Reforma 'política', do sistema eleitoral, é uma fuga fantasista dos nossos problemas reais
DESDE QUE O "gigante acordou", muitos de nós nos passamos a intérpretes da "voz das ruas" e dos motivos do surto protestante de junho.
A luz do calor da "multidão" (não são mais massas) suscitou ainda debates visionários sobre o poder constituinte das ruas, democracia direta e outras revoluções de corpo e alma políticos.
Não mais que de repente, porém, eis que voltamos a discutir as mumunhas do PMDB e as quizilas do PT com Dilma Rousseff, política politiqueira derivada da conversinha acerca de um projeto de reforma política que nem bem isso é.
Os sonhos de supremo civismo e mudança acabaram reduzidos, segundo a média, a mídia e as medianas das "redes sociais", a demandas de "serviços públicos de qualidade" e revolta contra a "política corrupta". Mesmo o atendimento dessas expectativas reduzidas, pois vagas, não depende de um sistema eleitoral refeito. Nem se fale da probabilidade imensa de que dessa reforma resulte um monstrengo.
Os sistemas eleitorais adotados em países mais ou menos civilizados têm defeitos e qualidades; em cada país, é divertido ver quanta gente acha que a grama do vizinho é mais verde, que o sistema eleitoral dos outros tende a resolver os "vícios" políticos de cada nação.
Sim, cada um desses sistemas tende a formatar modos e manhas da política e dos partidos (influenciam a criação de sistemas bipartidários ou fragmentados; mais ou menos estáveis etc.). Mas o que parecem detalhes operacionais pode transformar sistemas semelhantes em animais completamente diferentes (ou mesmo monstros).
Voto distrital com ou sem segundo turno (EUA ou França)? Com eleição de um ou dois representantes (Chile)? Distrital misto com lista aberta ou fechada? Como vão ser definidos os distritos (a região que vai eleger seu deputado, decisão que sempre acaba em bandalheira)? Quase tudo seria tema do plebiscito? Não? Mas, se os detalhes ficam a cargo dos "políticos corruptos" e são tão importantes, não voltamos à estaca zero?
O resultado de cada maquinaria eleitoral depende ainda de fatores como estrutura do governo, da burocracia, da Justiça, da forma de decidir o Orçamento e de algo que vamos chamar grosseiramente de "cultura e sociologia políticas". Isto é, de história dos partidos, dos conflitos sociais, do grau de "civismo" (engajamento político), da desigualdade econômica e de poder entre cidadãos, entre regiões etc.
Reformado o sistema, eleitores e políticos vão ainda reaprender a fazer seus cálculos e jogadas de acordo com as novas regras, o que leva tempo (várias eleições) e, sim, acaba alterando um tanto da cultura política, mas sabe-se lá para qual direção. No fim das contas, brincar de aprendiz de feiticeiro ou engenheiro político pode dar em nada ou em desastres.
Melhor, enfim, fazer reparos parciais no que há de pior e ver que bicho dá, em vez de tentar a reforma da natureza.
Mexer na maquinaria eleitoral muda a forma de transformar carne em recheio de linguiça. Mas a política maior, a divisão da renda ou do poder, a eficiência do governo, o direito à cidadania, nada disso muda necessariamente (ou quase nunca) com a compra de um novo moedor de carne político.
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