O GLOBO - 21/07
Na próxima manifestação, carregarei um cartaz com os dizeres: ‘Eu não tenho um corpo. Eu sou um corpo’
Paradoxo
O escritor britânico Will Self tem um romance chamado “Como vivem os mortos”. O livro é ótimo, mas mesmo que não fosse já valeria pelo título. Poucas vezes o chamado “humor britânico” foi tão mordaz. Por medo de morrer acreditamos nos paradoxos mais absurdos, como o que apregoa vida após a morte. Existe contrassenso maior? Como se pode estar vivo e morto ao mesmo tempo? Cartas para a redação.
O tamanho da nossa dor
É sabido que o medo da morte inspirou-nos grandes criações. A religião e a filosofia, para começar. John Lennon diz numa música que Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor. Deus é provavelmente um dos personagens mais interessantes engendrados pela imaginação humana, e o medo de morrer foi sem dúvida um dos motores dessa invenção. Mas discutir a existência de Deus é obviamente uma polêmica espinhosa demais para um domingo. Passemos ao próximo tópico.
O corpo
É provável que só tenhamos conseguido sobreviver — e dominar o mundo — porque tememos a morte como nenhum outro animal. A consciência de nossa finitude é quase insuportável e nos obriga a superá-la (e tentar esquecê-la) a cada minuto. Talvez por isso insistimos em dizer, quando morre alguém, que o corpo de fulano foi enterrado. Repare que nos noticiários quase nunca se diz “fulano foi enterrado”. Diz-se “o corpo de fulano foi enterrado”. Como se, de certa forma, a morte não fosse definitiva para quem morreu. Não religiosos e ateus combativos costumam dizer: “Eu não tenho um corpo. Eu sou um corpo”. Parece mera formalidade semântica, mas é bem mais que isso. É uma constatação filosófica e biológica. Na próxima manifestação, carregarei um cartaz com os dizeres: “Eu não tenho um corpo. Eu sou um corpo”.
O Espírito
É claro que, além dos genes, realizações sempre sobrevivem à morte de alguém. Pode-se dizer, da maneira mais laica possível, que o espírito de um morto permanece em suas palavras, obras e atitudes, e também nas lembranças que inspira nos vivos. Toda vez que ouço Amy Winehouse cantar, por exemplo, sinto que ela está viva. Assim como quando contemplo um edifício de Oscar Niemeyer, ou ouço um solo de Thelonius Monk, tenho certeza de que o velho arquiteto e o louco pianista não morreram. Shakespeare é um morto que vive muito bem há muito tempo. Um verdadeiro fenômeno de longevidade post mortem. O.k. Mas essas são figuras de linguagem e não pressupõem que exista um espaço metafísico onde os mortos pensam, nos observam e até interagem conosco de vez em quando, certo?
João Ternura
Em “João Ternura”, único romance escrito por Aníbal Machado, e só publicado depois de sua morte, há um personagem que diz que só morremos de verdade quando morre a última pessoa que se lembra de nós. Essa é uma forma clássica de sobrevida dos mortos e permite que alguns deles tornem-se verdadeiramente imortais.
Os mortos na parede
Penso em tudo isso porque ao entrar na sala do meu apartamento, logo depois de acender as luzes, dou de cara com minha sogra, que já morreu. Ao lado dela estão meu sogro e meu pai, igualmente mortos. Mas eles sorriem para mim, vivinhos da silva. Não, não estou vendo fantasmas nem aderi ao espiritismo. Eu simplesmente observo as fotos deles na parede. Os mortos também vivem em fotografias nas paredes, nas estantes, nos criados-mudos e nos álbuns de família. E nos sonhos, claro.
Nós que aqui estamos, por vós esperamos
Lembro da vez em que questionei uma querida amiga, já idosa, por ir tantas vezes ao cemitério. “Tony”, ela respondeu com a espirituosidade dos que conhecem a vida, “tem muito mais gente minha lá do que aqui”. Ela era muito religiosa e já foi desta para uma melhor, como constata a ambígua expressão. Apesar de contumaz frequentadora do cemitério, ironicamente minha amiga pediu que fosse cremada quando a morte chegasse. A verdade é que quanto mais velhos ficamos, mais mortos existem em nossas vidas. O que me parece uma preparação bastante adequada para o grand finale.
O ‘grand finale’
Todas as religiões tentam nos aliviar da aflição da morte vendendo (às vezes bem caro) a ideia de uma “vida eterna”. Tudo bem, mas eu não acredito nisso. Respeito as crenças alheias e espero da mesma maneira que respeitem minhas descrenças. Não tenho nada contra as religiões, desde que não se imiscuam em educação e política e não insistam em transformar seus códigos morais em leis para todos. De resto, desejo boa sorte aos participantes da Jornada Mundial da Juventude, que deve agitar a cidade nos próximos dias (que, aliás, já anda bastante agitada com as recentes manifestações contra o governo). E a despeito do inegável carisma e simpatia do hermano Bergoglio, vale lembrar: o papa não me representa.
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