quinta-feira, março 29, 2012

O alerta por trás do caso Demóstenes - EDITORIAL O GLOBO


O Globo - 29/03/12


O senador Demóstenes Torres (DEM-GO) foi, durante muito tempo, uma espécie de homem acima de qualquer suspeita. Líder do partido na Casa, crítico vigoroso de desvios éticos, vocalizou a maioria da opinião pública quando, sem medir palavras, investiu contra o esquema peemedebista que controla o Senado sem preocupação com os manuais de boas condutas. Ou ao pedir a expulsão dos protagonistas do escândalo brasiliense do "mensalão do DEM", à frente dele o ainda governador José Roberto Arruda.

Por isso, talvez não tenha havido, nas últimas legislaturas, surpresa maior que a descoberta do relacionamento nada ético entre o senador e o bicheiro Carlinhos Cachoeira, também de Goiás. O lado obscuro do destemido defensor de boas causas começou a ser iluminado a partir da Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, deflagrada contra a indústria dos caça-níqueis, atividade ilegal em que o velho jogo do bicho firmou alianças com máfias internacionais e fez um up-grade em dinheiro, poder e violência.

À descoberta que Cachoeira dera ao senador, como presentes de casamento, um fogão e geladeira importados, o político respondeu, de maneira singela, que não poderia perguntar o preço dos regalos ao amigo. Mas as evidências de que o relacionamento entre Demóstenes e Carlinhos ultrapassava os limites de uma exótica amizade se acumularam. Não é comum um bicheiro dar a um político um tipo de telefone supostamente vacinado contra grampos para, por meio dele, ficarem em contato constante. O equipamento não funcionou ou usaram outros aparelhos para colocar os assuntos em dia, pois mais de 300 ligações entre os dois teriam sido gravadas pela PF. O conteúdo das conversas implicaria Demóstenes nos negócios escusos de Cachoeira.

A primeira reação dos senadores foi de pavloviano corporativismo: situação e oposição subiram à tribuna para prestar solidariedade ao ultrajado colega, um jogo conhecido em cujo final costumam-se engavetar as piores investidas contra o decoro. As denúncias, porém, foram se acumulando, Demóstenes perdeu a liderança do DEM e até mesmo a Procuradoria-Geral da República, desatenta ao caso, despertou para o escândalo, e, na terça, o procurador Roberto Gurgel, afinal, despachou pedido ao Supremo para ser aberto inquérito sobre o senador. Gurgel já estava há algum tempo com o processo, mas alegou esperar mais informações da operação policial.

A proximidade entre o bicheiro e Demóstenes realça a grave questão da infiltração do crime organizado nas instituições. E não se pode esquecer que, além do senador, dois deputados também faziam parte - ou fazem - deste círculo íntimo de Carlinhos: Carlos Alberto Leréia (PSDB) e Sandes Junior (PP), ambos de Goiás. O próprio bicheiro é conhecido por antigas relações subterrâneas com o mundo político, expostas no vídeo gravado em 2002 em que Waldomiro Diniz, então na Loterj, e futuro assessor de José Dirceu na Casa Civil no governo Lula, o achacava. Cabe lembrar que o escândalo causado pelo vídeo, revelado pela revista "Época" em 2004, abortou uma operação em curso no governo e Congresso para a indesejada legalização do jogo.

Se Cachoeira atua no Congresso, no Rio há milícias com representação nas Casas legislativas, e um juiz sob suspeição de proteger esses grupos. Demóstenes não pode ser visto como caso isolado.

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