O Estado de S.Paulo - 19/01
Corre que governar é a arte do possível, quando não do desespero. Muitas vezes, conduzir um país envolve acordos malcheirosos. El Salvador que o diga. Em 2012, com a violência à solta, os governantes do convulsionado país centro-americano taparam o nariz e selaram seu pacto faustiano.
À mesa estavam líderes da Mara Salvatrucha e da Barrio 18, duas gangues rivais, das mais temidas do hemisfério, que disputavam à pólvora o mercado de droga e armas. Do outro lado, sentaram-se representantes da Igreja Católica, que se ofereceram como fiadores da paz. Fora dos holofotes, estava o governo de Mauricio Funes, que negou seu papel no acordo com a mesma veemência de alguém que esperava dele um milagre.
Foi um gesto extremo que trazia riscos enormes. Com 68 homicídios a cada 100 mil salvadorenhos, a terceira pior taxa no mundo, a explosão de violência fez refém essa pequena nação de 6,1 milhões de habitantes que rumava à ruína. Valia a pena fiar a paz na honra de bandidos?
Hoje, dois anos depois, essa pergunta ainda ressoa pelo país, com eco nas Américas. No dia 2, os salvadorenhos elegerão o novo presidente. As pesquisas indicam a vantagem folgada do candidato governista. Ele conta com o embalo do presidente, que acaba o mandato com 60% de aprovação. O desempenho é surpreendente para quem conduziu o país sem brilho nem ousadia, fez pouco para estimular a economia - que cresce sofríveis 0,6% ao ano desde 2009 - e deixa uma dívida pública preocupante. Funes salvou-se, talvez, em razão dos investimentos sociais, que diminuíram a pobreza sem tocar na vasta desigualdade social, notória na região.
Arredio à critica e com pouco entusiasmo para mercados abertos, o presidente estreitou o comércio internacional e afastou investidores. Na escala de liberdade econômica, El Salvador mereceu a nota 66 da Heritage Foundation, relegando o país à décima primeira posição entre os latinos.
Mas o fiel da balança na política salvadorenha pode ser a taxa cadente de violência. Após a polêmica, o pacto de gangues colheu resultados. O índice de homicídios recuou de forma dramática. Em 2011, mais de 11 pessoas tombavam assassinadas todos os dias, chegando a 14 na véspera da trégua. Ano passado, a média diária foi para 6,8. Embora a criminalidade tenha voltado a aumentar ligeiramente no início deste ano, a imagem de El Salvador como um pária da América Latina começa a se desfazer. A região está de olho.
Recentemente, dois negociadores do pacto de paz visitaram a prisão de San Pedro Sula, cidade mais violenta do mundo (187 homicídios por 100 mil habitantes), para um encontro com integrantes hondurenhos das gangues de El Salvador. A iniciativa partiu dos criminosos, que pediam ajuda da Organização dos Estados Americanos.
Até onde vai o pacto faustiano? Em El Salvador, criou-se um paradoxo. O governo jamais assumiu seu papel na negociação, que poupou mais de duas mil vidas em dois anos, embora não hesite em tentar faturar com seu êxito.
A sociedade agradece a trégua mas não confia nela. Dissidentes receiam que o país vire prisioneiro dos prisioneiros, que podem matar ou não dependendo das concessões e mordomias que consigam espremer.
Segundo o jornal El Faro, que escancarou o pacto oculto em 2012, uma delas já foi concedida e foi fundamental para "comprar" a paz. Foi a transferência dos líderes criminosos da segurança máxima para cadeias menos rígidas, com direito a visitas conjugais e telefones celulares. Imediatamente, os assassinatos caíram. O país comemorou - discretamente. Na lógica faustiana, o que cai também pode subir.
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