O GLOBO - 19/01
Eu me esmerava em criar novas e escabrosas provas quando senti o cheiro de mofo da casa da minha avó
1. Eu tentava escrever uma crônica de ano novo. Imaginei uma carta aos deuses olímpicos propondo a realização das Apocalimpsíadas, evento em que cidadãos comuns participariam de provas urbanas na cidade do Rio, utilizando a metrópole em obras e seus subsequentes congestionamentos e transtornos urbanos como mote da competição.
2. A ideia era ser irônico, amargamente irônico, já que a amargura é a gasolina aditivada da ironia. O slogan natural do projeto seria: se a vida te der um limão, faça dele uma limonada. Acho o provérbio óbvio e meio idiota, mas explica bem a ideia. Na crônica, eu argumentava que tal competição valorizaria e enalteceria nossas cidadanias e civilidades, quando, atualmente, o caos urbano só faz testar paciências e medir a capacidade de nos conformar e resistir aos apelos da insanidade. Mas eu só estava sendo irônico.
3. Entre as provas que imaginei para as Apocalimpsíadas, constavam:
Cem metros rasos no congestionamento (largue seu carro parado no engarrafamento e saia correndo por cima dos automóveis imóveis, amassando capôs, detonando tetos solares e estilhaçando para-brisas).
Corrida de obstáculos na calçada (desvie de bueiros explosivos ao longo de uma volta no quarteirão. Caso não perca nenhum membro anatômico pelo caminho, suba ao pódio com as duas pernas e comemore elevando os dois braços aos céus).
Apneia no emissário (mergulhe sem tubo em plena Baía da Guanabara, no local em que emissários submarinos ejetam esgotos da cidade. Se retornar vivo do mergulho, ganhe uma medalha e tratamento privilegiado em hospital público).
Biatlo comunitário (galgue as intermináveis escadarias das favelas de dois em dois degraus. Pacificada ou não, dê um rolé lá em cima, desviando dos tiros. Se sobreviver, volte pelas escadarias, pulando de três em três degraus).
Medley na inundação (durante as inundações corriqueiras, saia nadando variando os estilos. Quem sabe você chega em casa a tempo de ver a novela?).
Luta Vasco-Atleticana (saia porrando quem estiver ao seu lado. Chute a cabeça de seu adversário. Quem morrer primeiro perde).
Eu me esmerava em criar novas e escabrosas provas quando senti o cheiro de mofo da casa da minha avó. Virei-me. Era um velho que me observava por trás de minha cadeira. O fantasma acinzentado de um antigo cronista, ou algo do gênero.
4. “Quanta amargura”, disse o fantasma. “E sem graça, ainda por cima. Isso é uma crônica de início de ano, seus leitores merecem um pouco mais de positividade e esperança. Ou de humor, pelo menos”, concluiu depois de respirar como se lhe faltasse o ar.
“Tem humor”, me defendi. “Negro.”
“Não importa a cor, o humor tem de ser engraçado. O seu não é.”
“Sente-se”, eu disse, convidando-o a sentar-se ao meu lado em frente ao computador. Só então notei que ele usava bigode.
“Você não é aquele que fazia umas crônicas meio melancólicas?”, perguntei.
“Eu era melancólico, você é amargo.”
“Sinal dos tempos. Me fale mais desse negócio de esperança.”
O velho fantasma apertou-se com dificuldade ao meu lado na cadeira. Seus quadris eram largos e faziam um ruído estranho quando ele se mexia. Como se faltasse óleo nas juntas. Seu bigode exalava um cheiro de armário fechado.
“O Brasil é uma merda, eu sei, e tudo está errado”, prosseguiu. “Mas será que temos de ser sempre tão desiludidos? O momento em que as pessoas estão curtindo o início de um novo ano é a hora de exprimir alguma esperança, mesmo que a título de distração passageira.”
5. Apesar do cheiro de naftalina do bigode, a companhia do velho era agradável. Eu queria falar sobre literatura, mas ele insistia em falar sobre mulheres. Perguntou-me sobre meus níveis de PSA e do tamanho da minha próstata. Falou também da saudade que sentia de aipim frito. Pediu-me um cigarro, mas eu disse que não fumava.
“Pare de escrever essa crônica”, ele exclamou de repente com voz grave e enferrujada. “Se é que se pode chamar isso de uma crônica. Estou ficando sentimental, vamos dar uma volta.”
Topei. Às vezes é preciso seguir os conselhos de um fantasma de bigode.
6. Caminhamos até a Praia de Ipanema, pois o velho queria ver “mulheres de biquíni”. Avisei-o que, com sorte, talvez até visse alguma de topless. Ele andava com dificuldade e demoramos para chegar. Na praia, uma brisa suave soprava do oceano. Pessoas pegavam sol, jogavam bola, bebiam água de coco, pedalavam, andavam, nadavam, corriam, riam, respiravam. O sol iniciou seu mergulho para o fundo do mar enquanto banhistas aplaudiam. Se houve arrastão, ou topless, ninguém notou. Comentei com o fantasma sobre um pôr do sol a que eu assistira com minha mulher na Grécia. “Humanos, não importa onde e quando, estão sempre aplaudindo o sol”, disse ele, pensativo. Então uma grande explosão tomou forma no horizonte, como se o sol se estilhaçasse de repente, e todos correram em pânico. Quando olhei para o lado, o fantasma já tinha desaparecido.
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