O Estado de S.Paulo - 04/09
O recém-publicado segundo volume da biografia de Getúlio Vargas (Getúlio 1930-1945, do governo provisório à ditadura do Estado Novo, Lira Neto, Cia. das Letras) é bem mais interessante que o primeiro. Ganham atenção os temas nacionais em relação às querelas gaúchas. O relato político é estimulante, mas o tratamento das questões econômicas é sumário. No primeiro volume, tal crítica não era relevante, pelo escasso envolvimento de Vargas com assuntos econômicos. Apesar de ter sido ministro da Fazenda, só cumpria as instruções de Washington Luis. Neste volume, as numerosas omissões fazem falta.
São repetidas acriticamente análises que levam a sério as promessas da diplomacia alemã de que a Alemanha poderia suprir os equipamentos requeridos para instalar o que seria a usina siderúrgica de Volta Redonda. Não há dúvida de que Vargas tentou jogar com uma possível alternativa alemã para extrair concessões dos EUA, mas os documentos oficiais norte-americanos indicam que Washington não levou o blefe a sério (memorando de Walmsley 6/3/1940, 832.6511/77, RG59, National Archives, por exemplo). Como assinalado no livro, as promessas alemãs eram de suprimento no pós-guerra. Dependiam de um cenário de derrota britânica, pois o bloqueio naval britânico havia inviabilizado o comércio entre o Brasil e a Alemanha após setembro de 1939. A concessão dos EUA quanto à siderurgia deve ser entendida num quadro que incluiu a sustentação de preços do café, por meio de acordo interamericano (não mencionado no livro), e a interferência para liberar a carga militar a bordo do navio Siqueira Campos, retido pelos britânicos. Os EUA buscavam fortalecer a posição do Brasil em detrimento da Argentina e reconheciam a importância estratégica do Brasil no Atlântico Sul. A sugestão de que Londres teria cedido à "intimidação psicológica" de Vargas não pode ser levada a sério. Faz parte da lenda. Vargas era matreiro, mas seu poder de barganha era muito modesto.
Há outros problemas menores. As dificuldades quanto à ratificação do tratado comercial com os EUA deveram-se à resistência de industriais brasileiros, e não à reticência de Washington. O acordo sobre a dívida externa assinado em 1934 não foi só com banqueiros ingleses (sic), mas incluiu todos os empréstimos externos. Ao contrário do que é afirmado, o Brasil nunca assinou tratado comercial com a Alemanha, por causa da resistência dos EUA. O comércio teuto-brasileiro era regulado por acordos entre o Banco do Brasil e o Reichsbank.
Encabeçam a lista de omissões o default da dívida externa, peça essencial da justificativa do golpe de 1937, e o acordo "definitivo" da dívida externa de 1943, incluindo a dívida acumulada desde a independência. Também não há menção a controles de importações ou políticas cambiais. Nem ao impacto da grande depressão sobre o nível de atividade no Brasil. Nem, tampouco, à política do café ou à natureza da política econômica que assegurou a retomada precoce da economia brasileira.
Há pouca intimidade com ordens de magnitude. Nem o mais fanático torcedor do tricolor carioca sugeriria que as arquibancadas do estádio de Álvaro Chaves comportavam 50 mil espectadores em 1932 ou em qualquer época. Bem mais grave: a indenização paga à Argentina por causa dos estragos fronteiriços causados por Gregório Fortunato não foi, como argumentado, superior à receita anual de todas as caixas de aposentadorias e pensões, que constituíam a "vitrine da política trabalhista". De fato, tais receitas foram de quase 102 mil contos, e não de 102 contos, como presume o autor, tropeçando na tentativa de ironizar a "política trabalhista" de Vargas e mostrar quão oneroso era usar os serviços de Gregório.
Apesar da atenção excessiva a detalhes amorosos, familiares e gauchescos, e das limitações quanto à economia, o livro merece ser lido. A fórmula pode ter feito sentido para maximizar vendas. Mas o sacrifício da substância não foi desprezível.
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