O GLOBO - 04/09
Mesmo admitindo que o sistema liberal deixa a desejar, é preciso ter bons atores para levar à frente um teatro democrático que requer senso de limite, consciência dos papéis e um mínimo de honra
Mesmo sem ter lido Max Weber, o leitor sabe que foi esse sociólogo alemão quem relacionou a ética protestante com o advento de uma índole capitalista. Lutero foi o primeiro a romper com um mundo totalizado pela Igreja, o qual foi fragmentado, liberando as dimensões sociais do capitalismo. Disciplina, controle dos gastos e dos modos de agir, orientação para este e não mais para o outro mundo. E, num golpe supremo, a supressão de intermediários: santos, padrinhos e sacerdotes.
Nesta radical transformação o trabalho foi redefinido e passou de castigo bíblico para ser uma vocação ou um chamado. Ao lado disso, passou-se de uma fraternidade de aldeia para uma cidadania universal. Todos devem, em princípio, receber o mesmo respeito. Diferentemente dos vendeiros tradicionais, o capitalista mantinha os mesmos preços para todos, garantindo qualidade. Seus compradores passaram de desconhecidos a serem enganados a clientes ou patrões a serem acatados e cultivados.
O controle estrito do comportamento trouxe a simplicidade puritana que sustentou o igualitarismo e condenou ostentação. Isso gerava uma modéstia chocante a quem visitava os antigos Estados Unidos sem gordos e hiperconsumismo. Esse conjunto leva a uma busca interminável de coerência entre pessoas e papéis. Entre ação e pensamento; entre a conduta dos sócios e os seus clubes, sociedades e instituições.
Não é por acaso que muitos consideram Shakespeare — um autor com uma densa consciência entre atores e papéis, “o mundo é um palco e todos somos atores”, ele diz — como um dos fundadores do mundo moderno. Tal seria a norma geral e essa norma guiaria o drama da vida diária, tal como o texto de uma peça define o que ocorre no palco. Não há como ter um péssimo ator desempenhando Hamlet como não se pode ter um senador ladrão ou um ministro do Supremo envolvido com empréstimos de um banco para o qual atuou. Essa coerência entre atores a papéis é corrente em certas partes do mundo e, para mim, manifestou-se no Brasil como um espírito nas primeiras e mais empolgantes passeatas de junho e julho.
O que significa isso?
Eu afirmo que não se pode ter democracia com um comportamento permanentemente dúbio. Uma conduta para dentro e outra para fora. O voto secreto é exatamente isso. O parlamentar usa uma máscara, como um ninja, e vota secretamente, contrariando a mais trivial dimensão da representatividade. Usa o voto secreto (ou se abstém), como ocorreu vergonhosamente na semana que passou, para proteger um colega condenado e aprisionado, mesmo quando sabe que está pondo em risco a confiança na democracia.
Realmente, como ser contra os ninjas que escondem o rosto, como os velhos autores de hediondas cartas anônimas, quando muitos dos nossos representantes escondem em pleno parlamento a sua real opinião, revelando uma evidente ética dúplice? Uma ética desenhada para a tribuna e para o palanque, destinada a manter e arrancar votos; e uma ética para os amigos, parentes e compadres. Uma índole oculta e particular, feita para manter favores. Tal conflito, que tem passado despercebido nas nossas teorias do Brasil, é o estopim de crises permanentes e parte no nosso dilema.
Ernest Hambloch, um cônsul inglês com sensibilidade sociológica, dizia que as autoridades brasileiras eram “à prova de palavra”, porque não havia, como ainda não há, nenhuma consistência entre o que diziam e o que praticavam. Mesmo admitindo que o sistema liberal deixa muito a desejar, convenhamos que é preciso ter bons atores para levar à frente um teatro democrático que requer senso de limite, consciência dos papéis, e um mínimo de honra.
De fato, diz ao jornal “O Estado de S. Paulo” (em 1º do corrente) o presidente da Câmara dos Deputados, sr. Henrique Eduardo Alves: “O voto secreto gera essa anomalia, porque fica aquele voto de compadrio, do corporativismo, da amizade, do sentimento de pena. Em alguns casos, pesam ressentimentos pessoais em relação a outros procedimentos da Justiça.” Mera opinião? De modo algum. Eis um praticante da política nacional, fazendo a melhor teoria, na linha do meu “Você sabe com quem está falando?” Eis uma denúncia límpida da ética dupla que, inspirado em Weber, aponto no meu trabalho.
E, para não ficar só nesta tarefa que faz pensar em desistir, coloco a meu lado um autor cuja perspicácia política precisa ser revelada, o genial João G. Rosa, quando ele diz em “Sagarana”:
“Major Anacleto relia — pela vigésima terceira vez — um telegrama do Compadre Vieira, Prefeito do Município, com transcrições de um outro telegrama, do Secretário do Interior, por sua vez inspirado nas anotações que o Presidente do Estado fizera num ante primeiro telegrama, de um Ministro conterrâneo. E a coisa viera vindo, do estilo dragocrático-mandológico-coactivo ao cabalístico-estatístico, daí para o messiânico-palimpséstico-parafrástico, depois para o cozinhativo-compradesco-recordante, e assim, de caçarola a tigela, de funil a gargalo, o fino fluido inicial se fizera caldo gordo, mui substancial e eficaz; tudo isso entre parênteses, para mostrar uma das razões por que a política é ar de fácil se respirar — mas para os de casa, os de fora nele abafam, e desistem.”
Impossível acabar com a dualidade entre nós e eles, mas é preciso tomar ciência de que não suportamos mais essa química do mandológico para o compadrio que leva ao uso pessoal da norma, transformando tudo no caldo da famosa e cristalina pusilanimidade nacional.
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