terça-feira, setembro 10, 2013

Baratinha tonta - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 10/09

Os EUA não têm presidente; têm uma baratinha tonta que fala demais e depois espera por um milagre


Nunca sigas o teu primeiro instinto porque ele será sempre generoso. O conselho é de Talleyrand, diplomata e premiê francês do século 19. É um bom conselho. Pena que Barack Obama nunca o tenha seguido.

A vaidade do presidente americano, apaixonado pelas suas palavras grandiloquentes e pela sua suposta retidão moral, é incompatível com o realismo cínico, porém salvífico, do político francês.

E, no entanto, se Obama tivesse lido Talleyrand, talvez ele não tivesse mergulhado os Estados Unidos no desastre do dossiê sírio. Que promete continuar e gangrenar.

Tudo começou há um ano, quando Obama, do alto do seu púlpito, seguiu o seu instinto generoso e afirmou que o governo da Síria não poderia cruzar certas "linhas vermelhas".

Que bonito! O carniceiro de Damasco poderia matar o seu povo de todas as formas possíveis e imaginárias. Como, de fato, o tem feito com apreciável sucesso.

Mas, cuidado!, ele não poderia usar armamento químico. Isso é feio. Isso fere a sensibilidade do mundo. E Obama, humildemente, existe para representar o mundo.

Como é evidente, o moralismo vácuo do personagem é aberrante. Não apenas porque armamento convencional tem uma capacidade destrutiva que pode ser incomparavelmente superior a qualquer arma química. Mas sobretudo porque, com armas químicas ou sem elas, é a brutalidade de Bashar al-Assad que deveria ter comovido Obama desde o início.

Se o presidente americano considerava intoleráveis as matanças de Assad, só restava a Obama ter agido em conformidade: punindo o regime, promovendo a sua queda e apoiando os rebeldes que, nesses tempos primitivos, ainda lutavam sem a Al-Qaeda a acompanhá-los.

Mas a triste história das "linhas vermelhas" revela duas cegueiras suplementares. Para começar, estabelecer "linhas vermelhas" em política internacional é sempre uma tentação para que alguém se atreva a cruzá-las.

E esse alguém pode ser Assad; ou a oposição a Assad; ou os grupos jihadistas que operam no interior da Síria (e que já representam 20% dos rebeldes) --as hipóteses são múltiplas. As hipóteses são tentadoras.

E, cedo ou tarde, elas acabariam por ser experimentadas: por Assad, para testar a seriedade do ultimato de Washington; pela oposição a Assad, para arrastar Washington para o conflito sírio; ou até por ambos, como parece ser o caso nesta luta entre selvagens.

Por fim, e talvez mais importante, ninguém estabelece "linhas vermelhas" se não sabe antecipadamente o que irá fazer se elas forem violadas. Obama, manifestamente, não sabe.

Às segundas, quartas e sextas, o presidente americano quer punir Assad com bombardeamentos aéreos. Às terças e quintas, Obama exige mais: criar as condições para mudar o regime. Aos sábados e domingos, dias de descanso, talvez Obama deseje secretamente não fazer nada e esquecer o assunto de uma vez por todas.

Hoje, cada um desses caminhos já se tornou pior que o anterior. Se decidir punir Assad --pelo ar, jamais por terra-- isso deixará o ditador intacto e, aos olhos dos sírios, o verdadeiro resistente contra mais uma agressão imperialista.

Se, pelo contrário, Obama optar pela mudança de regime, isso pode significar entregar o poder de Damasco aos exatos jihadistas que os Estados Unidos passaram a primeira metade do século 21 a combater.

Por último, não fazer nada, depois da belíssima retórica das "linhas vermelhas", será sempre uma revelação de medo e fraqueza que o terrorismo islamita não esquecerá.

Não admira que, perdido no seu labirinto, Obama já admita tudo: consultar o Congresso; pedir autorização às Nações Unidas; talvez fazer uma peregrinação à Senhora da Aparecida. Os Estados Unidos não têm um presidente; têm uma baratinha tonta que fala demais e depois espera por um milagre.

Faça o que fizer no conflito da Síria, Barack Obama já perdeu. E perdeu porque acreditou que as suas palavras sentimentais, que costumam conquistar os corações moles do Ocidente, teriam o mesmo efeito hipnótico entre a pior vizinhança do Oriente Médio.

Se calhar, foi por isso que lhe atribuíram o Prêmio Nobel da Paz. Guerra, definitivamente, nunca foi com ele.

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