O GLOBO - 21/08
A primeira reação brasileira à detenção do parceiro do jornalista Glenn Greenwald foi teatral e inócua
Com o conhecimento do governo americano, a polícia inglesa deteve por cerca de nove horas e interrogou no aeroporto de Heathrow o cidadão brasileiro David Miranda, que desembarcara de um voo procedente de Berlim, a caminho do Rio de Janeiro. O chanceler Antonio Patriota disse que o episódio “não é justificável” e informou que os dois governos continuarão tratando do caso. Já o embaixador da Grã-Bretanha em Brasília foi mais preciso: o assunto “continua sendo uma questão operacional da Polícia Metropolitana de Londres”. Aleluia: Sua Majestade tem um governo que fala claro na defesa dos seus interesses.
Patriota precisa definir o que “não é justificável”, pois o embaixador inglês justificou-se. Nada de novo. Em julho de 2005 o brasileiro Jean Charles de Menezes, que vivia em Londres com todos os papéis em ordem, saiu de casa, entrou num vagão de metrô e tomou sete tiros na cabeça. A Polícia Metropolitana de Londres confundira-o com um terrorista e “lamentou o episódio”. Sua família recebeu uma indenização de cem mil libras. Cinco anos depois, Tony Blair, o primeiro-ministro da ocasião, publicou um livro de memórias no qual lamentou o “terrível erro”, lembrando que ficou “profundamente entristecido pelos policiais que estavam agindo de boa-fé, tentando garantir a segurança do país”. Aleluia de novo. Os governantes ingleses defendem suas polícias. Já as autoridades brasileiras agem de maneira diversa: depois da morte de Jean Charles, Blair foi convidado para prestar serviços de consultoria ao Rio de Janeiro, preparando-o para as Olimpíadas.
Nessa época o governo inglês tentava criar, nos aeroportos de Pindorama, barreiras para viajantes brasileiros. Milhares de nativos eram deportados ao descer em aeroportos europeus. Uma pesquisadora da Universidade de São Paulo foi recambiada de Madri enquanto estava a caminho de Lisboa. Só depois de alguma gritaria o Itamaraty adotou um critério de reciprocidade, devolvendo espanhóis. Veio a crise e hoje é a Espanha que manda gente para o Brasil, sempre bem recebida.
Em julho o doutor Patriota repudiou o procedimento dos governos de Portugal, Espanha, França e Itália, que negaram direito de sobrevoo ao avião do presidente Evo Morales porque se supunha que tinha a bordo o americano Edward Snowden. Deu em quê? Detiveram o companheiro do jornalista americano que divulgou os documentos secretos coletados pelo ex-funcionário da CIA.
Se governos da Europa e dos Estados Unidos acreditam que suas leis especiais justificam-se porque o combate ao terrorismo é um conflito mundial, o receituário da Guerra Fria poderia ser ressuscitado. O governo brasileiro conhece as identidades dos funcionários ingleses que trabalham para o serviço de informações e vivem aqui, sob o guarda-chuva diplomático. Basta pedir que um deles retorne ao seu país, o que não chega a ser uma punição pessoal.
Seria apenas um gesto capaz de materializar o desagrado do governo, como fez a rainha Vitoria com o ditador boliviano Melgarejo. Ele amarrara o embaixador inglês a uma mula, e a soberana mandou bombardear La Paz. Ao saber que a cidade ficava fora do alcance de seus canhões, riscou a Bolívia de seu mapa e declarou que ela não existia mais.
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