CORREIO BRAZILIENSE - 21/08
Ao editar o Motu Proprio, que alterou o Código Penal do Vaticano, o papa Francisco promoveu um dos maiores avanços da história da Igreja Católica Apostólica Romana. A medida, contemplando a aplicação de penas em casos de crimes contra crianças e adolescentes, tortura e lavagem de dinheiro, reduz sensivelmente a defasagem cronológica do sistema jurídico da Santa Sé.
O anacronismo era tão enfático que a própria comunicação oficial das providências, feita pela Rádio do Vaticano, salienta que as novas leis se alinham aos seguintes pactos internacionais: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; as Convenções de Genebra, de 1949, contra os crimes de guerra; a Convenção Internacional de 1965 sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial; a Convenção de 1984 contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; e a Convenção de 1989 sobre os direitos da criança e seus protocolos facultativos de 2000. Ou seja, adapta-se o Vaticano a normas e princípios implantados há muito tempo na maioria dos países ocidentais.
Ao efetivar a guinada às vésperas da visita ao Brasil, o sumo pontífice ratifica perante o mundo a disposição de combater, com a justiça dos homens, os problemas que têm afetado a Igreja nas últimas décadas e suscitado dúvidas quanto à coerência na aplicação de cânones religiosos. Quando ignorou, no plano do direito, as numerosas denúncias de pedofilia e de desmandos e desvios de recursos no banco oficial, o Vaticano comprometeu perante muitos a própria credibilidade como porta-voz do Evangelho. Especialistas acreditam que muitos católicos romanos migraram para outras igrejas cristãs em razão desses problemas mundanos que ganharam repercussão midiática.
A tipificação dos delitos de tortura e lavagem de dinheiro e a definição clara dos tipos de crimes contra crianças e adolescentes, incluindo o tráfico humano, prostituição, violência e atos sexuais, prática e divulgação de pornografia, ganham relevo porque revelam a busca de jurisdição penal mais eficiente em ambiente que deveria ser marcado exclusivamente pela religiosidade. Reconhece-se a necessidade da justiça humana para assegurar um ministério religioso de maior credibilidade perante os fiéis.
Outro aspecto importante do Motu Proprio foi a extinção da sentença de prisão perpétua, considerada inútil e desumana pelo pontífice. Adota-se regime semelhante ao do Brasil, com pena máxima de 30 anos, como aqui, ou de 35 anos de privação de liberdade. O novo código também inclui dispositivos específicos para crimes contra a humanidade, abrangendo o genocídio e a segregação racial.
Os passos inovadoros, que entram em vigor em 1º de setembro, serão aplicáveis, como tradição do Estado pontifício, sob a égide do princípio da personalidade, não apenas no território do pequeno Estado incrustado na cidade de Roma, mas também em todo o mundo. Isso significa que um padre que cometa um dos crimes previstos dentro de qualquer estabelecimento da Igreja, em qualquer país, estará sujeito ao julgamento e punição pelo sistema Judiciário do Vaticano. Assim, além da incidência do direito penal do país onde a infração for cometida, opera-se a incidência da legislação do Vaticano, conforme a possibilidade concreta de exercício da jurisdição. Aumenta-se a possibilidade sancionatória, considerando-se qual dos Estados soberanos puder capturar o criminoso.
Com o avanço legal, a Igreja revitaliza-se perante seus membros, valoriza-se institucionalmente no âmbito das relações multilaterais e ratifica um conceito universal pétreo: em quaisquer circunstâncias, mesmo que servindo a Deus, os homens não podem viver sem justiça.
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