O Estado de S.Paulo - 08/04
A Comissão Nacional da Verdade é muito relevante na construção da memória e da verdade histórica do nosso país. A Lei n.º 12.528, de 18 de novembro de 2011, aprovada pelo voto unânime de lideranças na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, define, no artigo 1.º, a sua finalidade: "Examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no artigo 8.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional".
Os objetivos da lei (artigo 3.º) detalham a finalidade geral. E, a exemplo desta, não contêm restrições quanto aos sujeitos e às organizações a serem pesquisados. A única limitação é temporal: as datas de promulgação das Constituições que inauguram os regimes democráticos de 1946 e 1988. Portanto, a Comissão da Verdade é obrigada a investigar os âmbitos da sociedade e do Estado, os dois lados no tocante ao regime militar, seu foco central, mas não exclusivo. Ou seja, os delitos contra os direitos humanos cometidos por agentes públicos - policiais, militares, juízes, promotores, etc. - e também os delitos do mesmo tipo cometidos por atores da sociedade que combateram o regime militar, mas igualmente os que o apoiaram.
Onde ocorreu tal violação dos direitos humanos, lá deve operar a investigação histórica. Somente o cumprimento dessa obrigação legal possibilitará à Comissão da Verdade elaborar um "relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações" (artigo 11) tão verdadeiro quanto possível, uma contribuição efetiva para a construção de uma cultura de paz e dos direitos humanos, no respeito à Lei da Anistia de 1979 (artigo 6.º) e à deliberação do Supremo Tribunal Federal de 2010. Para tanto é indispensável abrir todos os arquivos, convocar pessoas de todos os espectros a fim de contribuírem para o esclarecimento da violência política.
Entretanto, a Comissão da Verdade afastou-se da obrigação legal ao adotar a Resolução n.º 2, de 20 de agosto de 2012, de modo a investigar exclusivamente as "graves violações de direitos humanos praticadas (...) por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado". Em consequência, a sua vontade política se sobrepõe à vontade política do governo federal e do Poder Legislativo.
É discutível tal autonomia. Recentemente, foi ampliado o número de assessores da Comissão da Verdade mediante decreto presidencial, uma vez que a comissão não poderia fazê-lo por conta própria. Que dirá modificar a sua finalidade!
Dois argumentos frágeis foram empregados para justificar essa inflexão na finalidade da Comissão da Verdade.
O primeiro afirma que nenhuma comissão do mundo teria examinado os dois lados. Simplesmente não é verdade. Se a da Argentina se dedicou ao tema exclusivo dos desaparecidos, certamente em razão da sua gravidade, houve comissões que enfocaram os lados opostos dos conflitos sangrentos, como ocorreu na África do Sul, no Chile, no Peru e na Guatemala. Fiquemos com o exemplar Relatório Rettig, produzido pela comissão chilena, que analisou as estruturas, as ideologias, os tipos de ações criminosas contra os direitos humanos de autoria de agentes públicos e de agentes privados, das Forças Armadas e também dos partidos armados, tendo apontado as vítimas e as condições de seu padecimento, tanto de um lado como de outro.
O segundo argumento diz que os delitos cometidos pelas esquerdas não precisam ser investigados porque são conhecidos e os seus autores foram punidos. Verdade parcial, já que muitos foram julgados, punidos e anistiados. Seus atos não são, assim, do domínio histórico e público.
O que é mais conhecido é a repressão policial e militar - ilegal sempre, clandestina com frequência -, que produziu vítimas em número muito maior do que foram as vítimas das ações dos grupos armados de esquerda e de direita. Estruturas estatais foram criadas ou adaptadas para reprimir e matar, métodos provenientes do exterior associaram-se a práticas nacionais de tortura contra pessoas detidas e imobilizadas.
Os milhares de crimes da ditadura são execráveis e hediondos. Devem ser revelados os seus autores - inclusive os seus cúmplices da sociedade -, as suas estruturas e os seus métodos, bem como as suas vítimas. O terrorismo de Estado que vigorou entre nós, com trágicos resultados, fazendo lembrar o nazismo, desonrou a farda dos que tinham a missão constitucional da defesa nacional. A honra militar somente foi recomposta na democracia.
Milhares de opositores combateram o regime militar com a arma da convicção, da solidariedade, da organização da sociedade com métodos pacíficos. E houve militantes de grupos revolucionários de esquerda que assaltaram bancos, sequestraram, promoveram atentados terroristas, mataram sem possibilidade de reação das vítimas. Seus delitos contra os direitos humanos, as estruturas e as ideologias de suas organizações, o nome dos autores e de suas vítimas, tudo isso deve ser investigado e esclarecido pela Comissão da Verdade.
Pois bem, qual o motivo da Comissão da Verdade para adotar a investigação unidirecional e ilegal? O motivo é político: a perspectiva de revisão da anistia, objetivo estratégico do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), com o propósito de julgar e punir agentes públicos da repressão. Pois não seria válida a Lei da Anistia nos termos da Justiça de Transição e de deliberações judiciais internacionais.
É a isso que se presta a Resolução n.º 2, com suas consequências. Esse é o papel da Comissão da Verdade.
Em outras palavras, trata-se de refundar o Estado Democrático de Direito.
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