O GLOBO - 08/03
Jidá, a mais liberal cidade saudita, responde por 15% de todos os casos de Aids no país
Uma garota de 12 anos, um iPad e uma transfusão de sangue contaminado com o vírus HIV foram os ingredientes para o mais recente escândalo a sacudir a Arábia Saudita. A menina em questão, Reham al-Hakami, sofre de anemia falciforme, fazendo transfusões de sangue necessárias para controlar a doença dela. No mês passado ela ficou internada num hospital público na cidade dela de Jizan, e foi ali que ela recebeu a dose de sangue contaminado depois de não ser triado corretamente. Horas depois de Reham voltar para casa após a transfusão, os médicos do hospital se deram conta do erro e foram para a casa dela informar aos pais o que tinha acontecido. O Ministério da Saúde rapidamente tomou providências, transferindo a garota para o melhor hospital na capital, Riad, onde ele começou a ser tratada com medicação antiviral. Vários médicos e técnicos de laboratório responsáveis no hospital de Jizan foram demitidos e tiveram suas licenças cassadas.
Dias depois de Reham chegar a Riad, o ministro da Saúde, Abdullah al-Rabiah, visitou-a no hospital e deu um iPad novo para ela como presente, carregado de jogos e de gravações do Alcorão sagrado. Assim que a noticia foi divulgada, uma verdadeira enxurrada de críticas tomou conta do Twitter, com muitos sauditas clamando para o ministro renunciar. “Oi, desculpe pelo que aconteceu, então toma esse iPad e baixe uns aplicativos enquanto você espera morrer”, foi tuitado por vários usuários, chocados com a atitude do ministro. Daoud al-Sharian, um famoso apresentador de televisão, pediu que o ministro se demita. “Eu esperava que pelo menos somente dessa vez um ministro ia pedir demissão por causa dos erros do ministério dele”, disse Sharian no programa de TV que tinha o pai e um tio de Reham como seus convidados.
O ministro al-Rabiah reagiu dizendo que ele fez o que qualquer pai faria visitando uma filha no hospital: “Eu não podia chegar de mãos vazias e meus assessores tinham me dito que ela queria escutar o Alcorão, então pensei em trazer o iPad para ela.”
A família de Reham agora entrou com uma ação judicial contra as autoridades de saúde, pedindo uma indenização de US$ 13 milhões. Reham agora virou a garota-propaganda para os portadores do vírus HIV no reino conservador, onde homens muçulmanos podem casar com até quatro mulheres de uma vez — e onde camisinhas são vendidas abertamente nos balcões de farmácias —, mas onde ter e falar de uma vida sexual ativa não é permitido nem considerado de bom-tom.
A Aids e o vírus HIV já formam motivos de muita vergonha numa sociedade onde o sexo antes do casamento é proibido, e onde a homossexualidade é ilegal e pode ser punida com chibatadas e prisão. Mas o governo saudita se deu conta finalmente nos anos 1990 que não podia ignorar a doença, e que, queira ou não, sauditas e estrangeiros morando no país estavam tendo sexo de maneiras diferentes, e às vezes se infecionando com o vírus. Isso não quer dizer, de jeito nenhum, que os sauditas adotaram programas de conscientização como aqui no Brasil, onde o governo exorta ao uso de camisinhas. Mas hoje em dia qualquer saudita que se vê infecionado com o vírus HIV recebe tratamento de graça do governo. Os estrangeiros que ficam infeccionados têm menos sorte: são isolados em clínicas especiais e recebam somente remédios tópicos para tratar dos sintomas de dor e febre, e não a causa. Eles geralmente são deportados para o país de origem. Oficiais têm defendido essa posição dizendo que os cuidados médicos de longa duração são responsabilidade dos países de origem dos estrangeiros, que vão a trabalho no reino como convidados com contratos de dois anos, e assim não são tratados como imigrantes.
O governo saudita relatou 10.000 mil casos de HIV/Aids desde 1986, dos quais 23% foram de sauditas. A cidade de Jidá, a mais liberal do país, responde por 15% de todos os casos. O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas estima que 78,4% das vítimas sauditas contraíram a doença via relações sexuais, e que 21,6% das vitimas foram infectados durante transfusões de sangue contaminado ou no compartilhamento de seringas. Quase 80% das vítimas estão na faixa etária dos 15 aos 49 anos.
Muitas mulheres sauditas são infectadas pelos maridos, que levam o HIV para casa depois de viajar para Beirute e Bangcoc e visitar prostitutas por lá. O marido saudita de uma ex-colega minha ficou doente assim com o vírus, e ela somente ficou sabendo depois que uma enfermeira sentiu pena dela e contou. O meu próprio faxineiro, que fazia bicos limpando meu apartamento e os de outros em Jidá, mas que trabalhava em uma fábrica de alimentos, frequentava as prostitutas baratas e contraiu a doença. O fato de ele ser soropositivo foi descoberto durante um exame de sangue de rotina, e ele foi detido numa clínica para pessoas como ele. Depois de várias semanas, foi deportado para Bangladesh, de onde me ligou para contar sua triste historia. Ele me disse que não tinha dinheiro para comprar os medicamentos, e eu pensei que o governo do país também tampouco tinha capacidade de fazer isso. Eu mandei um dinheiro para ele, mas sabia que não ia durar muito tempo.
Nessa luta global contra a Aids, governos deviam se dar conta que é impossível vigiar e controlar a vida sexual dos seus cidadãos. O que pode ser feito é falar sobre a doença e como ela é transmitida; ensinar meios de evitar a contaminação — cujo método principal tem sido o uso de camisinhas — e combater a discriminação contra pessoas portadoras da doença. Governos no mundo árabe, inclusive o saudita, se dariam muito bem se seguissem esses pontos. Com mais de meio milhão de pessoas vivendo com o vírus do HIV no mundo árabe, ignorar a presença do vírus não é uma estratégia boa para enfrentar uma das mais desconcertantes doenças que a humanidade já viu.
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