O GLOBO - 08/03
Quatro páginas diárias nos jornais, desde que a renúncia do Papa foi anunciada, o que corresponde a umas três semanas — é difícil achar exemplo equivalente de cobertura jornalística. Qual o motivo? Certamente não é o carisma (inexistente) de Bento XVI. Muitas reportagens também se esmeram em explicar que a Igreja perde prestígio, perde fiéis, que surgem escândalos dia sim dia não. E, no entanto, vejo pessoas que não são católicas intensamente mobilizadas pelo tema “quem vai ser o próximo Papa?”
Não haverá uma razão única para isso. Desprestigiada a Igreja pode estar; mas ela ainda fornece a mitologia básica da nossa cultura. Experimente pensar num ano do qual fossem retirados o Natal, a Páscoa, a Semana Santa. Estranhíssimo, não? Nesse contexto, o Papa desenha uma figura de pai — que é o que o seu nome indica. Em termos de Ocidente, ele ainda é referência. Não por acaso, ele ainda tem uma palavra a dizer nas grandes crises, nas grandes comoções da humanidade. O contraste não poderia ser maior com outras figuras da atualidade — como as que, na Itália onde fica o Vaticano, pretendem chegar ao palácio Quirinale.
A figura do pai — tema imenso na literatura psicanalítica, ou na literatura “tout court”. Édipo matou o pai. Seria um exemplo do “assassinato ritual” com que você, simbolicamente, tem acesso à plena maturidade. Os nietzscheanos parecem ir além: a partir da “morte de Deus”, postulam um ser humano que seria o criador de si mesmo. Este é o exercício vital de personagens grandiosas como um Goethe.
O ser comum age e pensa de outra maneira. Exemplo prosaico é o da Venezuela, onde há multidões órfãs do coronel Chávez. Isso pode ter causas econômicas ou sociais; mas certamente é mais do que isso.
O mesmo acontece no Brasil. A partir de dados econômicos que são reais — como a expansão da classe média e a diminuição da miséria —, surge um clima onde o ex-presidente Lula se transforma numa espécie de pai da pátria.
Na política, isso é perigoso: conduz fatalmente ao personalismo. É fácil ver, hoje, que Lula tem dificuldade em lidar com a própria imagem. Sente-se mal fora do poder. Desenvolve um tipo de amargura estranha numa pessoa com os seus níveis estratosféricos de popularidade.
No caso do Vaticano, é um pouco diferente. Há exemplo de papas que desenvolveram personalidades imperiais. Mas não é a regra. O prestígio de que eles dispõem, mesmo nas fases mais críticas da Igreja, vem de uma coisa que se chama “autoridade espiritual”.
O mundo moderno tem feito um grande esforço para viver sem isso. É até bem típica da nossa época secularizada a figura do ateu tranquilo que é uma pessoa perfeitamente ética e pode ter um comportamento mais cristão que o de muitos cristãos.
Mas a autoridade espiritual existe. Pode vir, por exemplo, de um professor — um mestre — que abriu novos caminhos na sua vida. Na velha Grécia, quem chegou perto de Sócrates sentiu a sua mordida salutar. O doce licor da sabedoria.
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