FOLHA DE SP - 08/03
Hugo Chávez foi um personagem vital demais para que o encerrem em uma urna de vidro e o exponham à visitação pública, como animal empalhado.
É a opinião de quem tem verdadeira urticária ante à necrofilia, especialmente a necrofilia como instrumento político.
Admito que cadáveres embalsamados causam impacto. Nunca esqueci uma visita à quinta de Olivos, nas imediações de Buenos Aires, faz uns 30 e tantos anos, para ver a cripta em que estavam expostos Juan Domingo Perón e sua mulher Evita.
O esquife de Perón estava fechado e, portanto, não impressionava. Mas Evita, linda e loura em seu vestido branco, parecia que acabara de sair do cabeleireiro. Mas a placidez da morte não combina com personagens que foram tudo o que se quiser --de bom ou de ruim--, mas nunca foram plácidos.
Chávez era um furacão, vital, divertido, um extraordinário ator, que "deu horas de glória ao espetáculo da política", como escreveu para "El País" o colunista Lluís Bassets.
Fui testemunha ocular de alguns desses momentos em que ele foi exatamente como o descreveu a revista "The Economist" que está nas bancas: "Ele demonstrou ser um comunicador e um 'performer' natural, com inigualável habilidade para despertar empatia com os venezuelanos comuns, combinado com muita astúcia".
E olhe que a reportagem da revista é implacável com Chávez, a ponto de dar como título de capa "Um legado podre".
O espetáculo que vi foi em 2001, cúpula do Mercosul em Assunção do Paraguai. Os presidentes iam chegando ao elegante Yacht y Golf Club Paraguayo, recebidos por um trio que tocava e cantava guarânias, a música típica do país anfitrião.
Passou Fernando Henrique Cardoso que, pouco à vontade com o folclore do conjunto, entrou rapidamente. Passou Fernando de la Rúa, o presidente argentino, ainda mais refratário ao espetáculo e ainda mais apressado para entrar.
Aí veio Chávez. Parou junto aos músicos e puxou o canto de "Alma Llanera", uma espécie de hino nacional extra-oficial da Venezuela. Todo um espetáculo.
Depois ficou batendo papo descontraído com os três ou quatro jornalistas que havíamos furado a barreira de segurança e estávamos onde não poderíamos estar.
Soltou aquelas frases de efeito sobre o "câncer" que seria o neoliberalismo, pediu café, ofereceu café aos repórteres, a conversa seguiu como se estivéssemos no botequim da esquina, até um segundo café e a retirada para o interior do hotel.
Volto a Lluís Bassets para falar do ator Chávez, que o político e líder já foi dissecado em mil textos no mundo todo: "[Chávez] é mais virtuosismo que roteiro, mais qualidade de atuar que direção, mais instinto que inteligência, embora esta tampouco tenha lhe faltado na hora de alcançar o poder e, sobretudo, mantê-lo e concentrá-lo em sus mãos".
Dá até para dizer que sua carreira é produto de uma atuação teatral (no caso, televisiva), a julgar pelo que escreveram seus biógrafos Cristina Marcado y Alberto Barrera Tyszka: converteu "um mau golpe de Estado no melhor anúncio publicitário da década".
Alusão a seu comparecimento na TV depois do fracasso de sua tentativa golpista em 1992, que acabou sendo a catapulta para o posterior sucesso.
Um segundo momento cinematográfico vivido com o chavismo se deu em dezembro de 2002, oito meses depois do golpe que o derrubou por menos de 48 horas e no meio de uma greve da PDVSA (a Petrobras venezuelana) que ameaçava desestabilizá-lo.
Chávez marcou uma entrevista comigo e com Vladimir Goitia, então na Agência Estado, para as 22h, no Palácio de Miraflores.
Atendeu-nos por volta de uma da madrugada. Saímos às duas.
O ajudante de ordens que nos acompanhou até a rua foi abrindo eletronicamente uma porta atrás da outra. Na quinta ou sexta (e última) comentou: "Não parece aquele filme, o 'Agente 86'"?. Parecia realmente coisa de cinema, não de um palácio de governo meio sitiado pela crise.
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