O GLOBO - 08/12
Distúrbios dos últimos dias mostram profunda revolta popular contra avanço da Irmandade Muçulmana, em detrimento de outros segmentos sociais
A Primavera Árabe no Egito está mais para tempestade de areia nas pirâmides. Estão de volta à Praça Tahrir, no Cairo, as multidões que a ocuparam por 18 dias e forçaram o fim da ditadura de Hosni Mubarak, em fevereiro de 2011. Mas, ao contrário daqueles dias, agora os militantes não lutam apenas contra as forças de segurança, mas entre si. São grupos contrários ao presidente eleito para substituir Mubarak, Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana; e partidários do presidente, mobilizados para defender um governo de corte islamita.
Quando Mubarak caiu, o caldeirão foi destampado, e o país se deu conta de que só havia dois grupos organizados em escala nacional: o establishment militar, que sustentava a ditadura e o estado laico, e a Irmandade Muçulmana, maior organização islamita egípcia que sobreviveu ao regime de força, apesar de seus dirigentes terem sido perseguidos e presos constantemente. Os militares fizeram de tudo para não entregar o poder. Só o deixaram, e não se sabe ao certo em que medida, por exigência das multidões que retornaram à Praça Tahrir e das pressões internacionais.
Marcadas as primeiras eleições livres em mais de 30 anos, segmentos da sociedade egípcia tentaram se organizar, mas a vitória ficou mesmo com a maior força, a Irmandade Muçulmana. Os primeiros meses de governo de Mursi foram consumidos em disputas com os militares. Quando se sentiu forte, o presidente assumiu poderes absolutos, a ponto de ser chamado de “novo faraó” e comparado a Mubarak. Os poderes durariam até a realização de um referendo marcado para o próximo dia 15, sobre a nova constituição, produzida a toque de caixa por uma Constituinte dominada pelos islamitas — forças políticas seculares e representantes da comunidade cristã copta se retiraram da assembleia em protesto.
Os egípcios se sentiram traídos e voltaram às ruas, enquanto governos protestavam contra a guinada ditatorial de Mursi. Os choques dos últimos dias, em que manifestantes contra o presidente lutaram para superar as barreiras de segurança e chegar ao palácio, foram fortes a ponto de serem considerados os mais graves desde que Gamal Abdel Nasser deu um golpe militar, há seis décadas.
O anteprojeto de constituição atende a algumas demandas da revolução ao limitar os poderes da presidência, reforçar o do Parlamento e banir tortura e detenção sem julgamento. Também rejeita demandas dos salafitas pela adoção de rígidos códigos morais. Mas abre espaço para aplicação da sharia (lei islâmica) e tem trechos ambíguos em relação à defesa de direitos fundamentais e das mulheres.
A revolução no Egito não foi feita para consagrar a hegemonia da maioria (no caso, islâmica) em detrimento de outros grupos da sociedade egípcia. A nova constituição deve assegurar os direitos, liberdades e garantias individuais. Se não, a Primavera Árabe terá sido um embuste.
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