ZERO HORA - 23/03
Um dos últimos vídeos da rapaziada do Porta dos Fundos, grupo de comediantes que se tornou um fenômeno de público na internet, mostra uma moça chegando ao céu e descobrindo, para seu espanto, que o Deus verdadeiro não era o dos cristãos, muçulmanos ou judeus, mas uma divindade de pouquíssimo ibope adorada apenas numa remota ilha da Polinésia. Resignada a passar o resto dos seus dias no inferno por ter seguido a religião errada, a moça faz apenas um pedido à divindade que a recebeu no além:
– Será que eu podia dar essa notícia para o Malafaia quando ele chegar por aqui?
Fazer piada com religião dos outros ou mesmo falar sobre o assunto de forma excessivamente ostensiva já foi tabu no Brasil. Não mais. Nos últimos anos, temos assistido a um inédito acirramento de ânimos religiosos, o que dá origem não apenas a piadas e provocações mútuas, mas a uma certa dificuldade de manter a conversa num tom respeitoso.
Está ficando cada vez mais distante aquele tipo de arranjo social, tão à moda brasileira, em que católicos, evangélicos, espíritas, judeus e ateus esforçavam-se em acomodar seus credos e não credos em uma grande faixa intermediária distante dos extremos.
A presença de grupos religiosos articulados no Congresso Nacional parece ter precipitado esse clima de confronto. A fé instalou-se no centro de debates que envolvem não apenas convicções religiosas, mas uma determinada visão de Estado.
A chamada Frente Parlamentar Evangélica, que reúne 68 deputados, tem se articulado para votar em bloco segundo suas convicções. Para efeito de equilíbrio de forças, o ideal seria que membros de diferentes partidos conseguissem colocar em pé uma espécie de “Frente Laica”, com o mesmo tipo de organização e disposição para o debate. Infelizmente, é pouco provável que isso aconteça enquanto a sociedade civil não abraçar a ideia do Estado laico com a mesma determinação e diligência demonstrada pelo lobby religioso.
Manifestações recentes como a do Conselho Federal de Psicologia, que deixou claro que a “cura gay” não é apenas uma picaretagem, mas uma prática intolerável na profissão, e do Conselho Federal de Medicina, que esta semana pediu a alteração do Código Penal para que as mulheres tenham o direito de realizar o aborto até a 12ª semana de gestação, são fundamentais para enriquecer o debate com posições divergentes.
De um jeito talvez um pouco torto, a ruidosa bancada evangélica está obrigando o Brasil a sair da confortável, porém preguiçosa, posição de acomodação diante de alguns assuntos mais polêmicos. Quem está convencido de que a legislação sobre o aborto no país é arcaica ou que os casais homossexuais deveriam ter os mesmos direitos que os outros já não pode se dar ao luxo de ficar em silêncio. É preciso falar pública e enfaticamente sobre isso – e votar em políticos que se comprometam com essas causas.
Se Deus é polinésio, universal ou não existe é uma questão que cada um vai resolver intimamente da forma que puder. Quando entra no debate político, porém, a religião deixa de ser assunto privado, expondo-se àquele tipo de questionamento do qual se manteria resguardada se ficasse restrita ao plano da orientação espiritual.
2 comentários:
Bem, Murilo, acredito que o 'Estado Laico' seja uma hipótese bastante remota, diria que praticamente utópica, pelo menos no Brasil, pois isso exigiria imparcialidade política, o que de fato nós não temos visto nos dias atuais. Não apenas no âmbito político, mas em todos os círculos sociais, os embates entre religiosos x ateus x outros religiosos têm se intensificado ultimamente, pois sendo o Brasil constituído por essa miscigenação racial e cultural o ideal seria a busca por um equilíbrio, mas creio que ainda estamos relativamente longe desse patamar.
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