domingo, março 09, 2014

Saudades - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 09/03

Estar a pé entre os foliões é situação propriamente carnavalesca, pela qual já nem esperava este ano, e que ainda não tinha experimentado no renascente carnaval de rua carioca


Muito estimulante a experiência de entrar num bloco na Cinelândia. Isso é coisa que não me acontece desde 1956. Fiquei meio resfriado e tinha desistido de brincar carnaval. Vi blocos passarem na praia do Leblon e nas ruas de Ipanema. Fiquei horas parado entre a Vinicius e a Farme, dirigindo, e, ao contrário do que acontece em engarrafamentos de meio de ano, não me irritei. Olhar as pessoas no carnaval, os esboços de fantasias, a leve embriaguez (na maioria era mesmo muito leve), os beijos que não são propriamente roubados, tudo me interessava e muitas vezes comovia. Mas estar a pé entre os foliões é situação propriamente carnavalesca, pela qual já nem esperava este ano, e que ainda não tinha experimentado no renascente carnaval de rua carioca. O fato de estar na frente do Cine Odeon aumentava minha emoção. É lugar do começo de minha adolescência. Ri muito por, num primeiro momento, parecer-me que eu estava em Salvador, no Bloco dos Mascarados, que Margareth Menezes puxou por tantos anos. Esse bloco carioca, chamado Viemos do Egito, estava, por algum motivo que não entendi, desencontrado de sua banda, o que o limitava a usar música gravada. Um carrinho de som, do tamanho da berlinda do Círio de Nazaré (mas não erguido tão alto), começou a tocar “O canto da cidade”, na gravação antológica de Daniela Mercury. Eu repetia, rindo, “A cor dessa cidade sou eu”, e confirmava: estou na Bahia! A galera cantava junto.

Toda uma densidade da história recente (e já nem tão recente) do carnaval brasileiro passava pela minha cabeça. A essência de ser de rua do carnaval; a lembrança dos trios elétricos — os donos da rua já em 1960 e desde 1950 — sendo, no entanto, as únicas entidades carnavalescas a não terem corda, diferentemente das escolas de samba, das grande sociedades, dos afoxés e dos blocos com banda de metais; o extraordinário crescimento da indústria da axé music, com suas centenas de profissionais pontuais e competentíssimos, de cantores a motoristas especializados, de empresários a técnicos de som; o vasto repertório moderno baiano de canções propriamente carnavalescas (o qual merece mais de uma antologia); a construção do Sambódromo, tão polêmica no começo; a organização do carnaval do Recife partindo de pressupostos que se opunham ao que tinha acontecido em Salvador, onde o empreendedorismo de gosto capitalista predomina; a volta às ruas da juventude carioca.

As semelhanças com o carnaval baiano foram, na Cinelândia, pouco a pouco sendo desmentidas por observações de Duda, um amigo meu de Salvador que passava carnaval no Rio pela primeira vez. Não era tanto o fato de não haver corda: muitos blocos soteropolitanos não têm. Era principalmente a ausência de conhecimento prévio do itinerário a ser seguido e, gritante, a inexistência de policiais patrulhando. Com algumas gravações de Carmen Miranda e de grupos de forró, o Viemos do Egito se moveu da Cinelândia em direção ao Aterro, guinando para a Lapa ou a Glória. Voltei para casa antes de ver aonde o bloco chegaria. Mas vi bem o quanto ele era pacífico e doce. Muitos beijos entre pessoas que podiam ter chegado juntas ou encontrado umas às outras ali e naquele momento. Nenhuma das canções que saíam da berlinda foi tão cantada pela pequena multidão quanto “O canto da cidade”. Isso me fez chegar em casa com um restinho de gosto de Bahia. Mas com uma sensação profunda de ter estado imerso em realidade muito outra.

Faz anos, passei um carnaval no Rio justamente para não brincar. No domingo, fui ver uma exposição no CCBB com Antonio Cicero e Marcelo Pies. Ao sairmos dali, percebi que havia certa movimentação na esquina da Rio Branco. Nostálgico de minha puberdade (e sempre com saudades do carnaval), pedi aos meus amigos que me esperassem: eu queria só dar uma olhada na avenida. Para minha surpresa, ela não estava meio vazia, ocupada apenas por pais de família de bermudas mostrando quase nada a suas crianças, como vi, assombrado, acontecer nos anos 1980. Havia muita gente e blocos, batuques e cantos. Meu coração bateu. Voltei para o Arpoador, onde estava morando. Vi que a Praia de Ipanema estava cheia de gente. Pedi a meus amigos para irem olhar comigo. Nenhum bloco mais tocando, mas restos de multidão, alegre sujeira nas calçadas, vendedores no meio do asfalto, beijos. Fiquei certo de que o carnaval de rua do Rio estava renascendo e que a prefeitura ainda não tinha visto. Torci. Agora, gigantismo, relativo descontrole — e o nó da greve dos garis. Mas o mero fato de o carnaval carioca, nosso carnaval central, estar de volta às ruas, para além das cordas de concreto da Sapucaí, é enormemente significativo para mim.

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