GAZETA DO POVO - PR - 09/03
A nova lei belga é mais uma triste vitória para uma mentalidade que trata o ser humano como descartável
Apesar dos apelos de parte da população belga, de entidades médicas e até de cidadãos de outros países – como a pequena Jessica Saba, canadense de 4 anos que nasceu com uma severa má-formação cardíaca e gravou um vídeo –, o rei da Bélgica, Felipe, sancionou na semana passada a lei que estende a eutanásia a crianças. O Senado do país tinha aprovado a lei em dezembro de 2013, e os deputados fizeram o mesmo em fevereiro, remetendo o texto para a assinatura real. A Bélgica tornou-se, assim, o primeiro país a eliminar qualquer restrição etária para a eutanásia, em mais uma triste vitória de uma mentalidade que trata o ser humano como descartável e traça linhas entre as vidas que merecem ser vividas e as que podem ser eliminadas.
O texto aprovado pelo Parlamento e sancionado por Felipe é uma emenda à lei de 2002 que regulamenta a eutanásia no país. Com a mudança, crianças de qualquer idade que sofram de doenças incuráveis e estejam em estado terminal, passando por “sofrimento físico insuportável”, podem requerer a eutanásia. Uma equipe médico-psicológica teria de atestar que a criança tem maturidade suficiente para fazer tal pedido, e a eutanásia ainda teria de ser submetida à aprovação dos pais.
Dilemas bioéticos como o da eutanásia costumam envolver pelo menos alguns de quatro grandes princípios: o da autonomia (o direito de cada indivíduo a tomar decisões sobre sua vida), o da beneficência (a obrigação de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo), o da não maleficência (segundo o qual a ação médica não pode causar o mal ao paciente) e o da justiça (a obrigação de tratar cada um com a dignidade que lhe é devida). A defesa da eutanásia consiste em colocar a autonomia em uma posição muito superior a quaisquer outros princípios, subordinando-os ao desejo do paciente.
No entanto, se no caso da eutanásia para adultos essa abordagem já é altamente questionável (pois tanto a beneficência quanto a não maleficência merecem consideração igual à dada à autonomia), na situação das crianças essa argumentação é ainda mais insustentável, pois crianças não têm o discernimento necessário para avaliar uma decisão tão grave como a de solicitar a própria morte. Opositores da lei levantaram, por exemplo, a hipótese de a criança pedir a eutanásia para “agradar” aos pais, que sofrem com a doença do filho – aliás, a lei joga nas costas dos pais uma carga absurda, ao fazer deles corresponsáveis pela morte da criança, por meio de sua autorização. Acrescentar-lhes esse fardo quando eles já vivem uma profunda agonia chega a ser desumano.
“Estas são vidas que vão acabar de qualquer maneira”, disse, num rasgo de sinceridade cínica, o pediatra belga Gerlant van Berlaer, que assinou, com outros 16 médicos, uma carta aberta em defesa de lei. A resposta para esses casos, no entanto, não é matar o paciente, como defende Van Berlaer, e sim deixar que a vida siga naturalmente seu curso – é a chamada “ortotanásia”, que consiste justamente na renúncia aos meios extraordinários que prolonguem artificialmente a vida do paciente, desde que se mantenha o suporte básico, que consiste na alimentação, na hidratação e na supressão da dor. Foi justamente esse o argumento de 160 pediatras belgas contrários à lei da eutanásia; eles argumentaram, entre outros aspectos, que a medicina dispõe hoje de recursos para aliviar a dor enquanto a vida termina de forma natural. A experiência de médicos intensivistas mostra que, em muitos casos, quando o paciente solicita a eutanásia, o que ele realmente quer é ser poupado da dor, e não dar fim à sua vida.
O tio de Felipe, o rei Balduíno, abdicou do trono belga em 1990 para não ter de assinar a lei que legalizava o aborto no país. É triste que o atual monarca não tenha a mesma compreensão a respeito do valor da vida humana, especialmente quando ela está mais vulnerável, devido à doença. Ninguém deseja que uma criança em estado terminal seja mantida viva a qualquer custo – a obstinação terapêutica que prolonga desnecessariamente a vida e o sofrimento de pacientes também merece condenação. Mas defender a atitude oposta, de agir para abreviar a vida de um doente terminal, baseada num conceito completamente distorcido de “dignidade”, é um passo na direção da desumanização de uma sociedade.
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