O Estado de S.Paulo - 02/02
Tudo, daqui por diante, me fará lembrar de Donizete Galvão, bruscamente desaparecido na madrugada de quinta-feira passada, aos 58 anos de idade. A poesia, é claro, a um tempo delicada e forte, que ele destilou em livros ao longo de um quarto de século, sete magros porém substanciosos volumes a que volto sempre, e aos quais, a partir de agora, voltarei também pela falta que já me faz o autor.
Mas não é só a poesia que me fará lembrar de Donizete. Foi nisso que pensei quando, no velório, ao topar com dois, com seis, com dez ou mais amigos comuns, repassei a genealogia de minhas relações para constatar que a ele devo aquelas e outras tantas amizades, e seus desdobramentos. Pois o Doni, mineiro de Borda da Mata transplantado para São Paulo em meados dos anos 70, foi um tremendo agregador de afetos. Como esquecer os "sabadônis", forrobodós que ele, ao lado da mulher, Ana Tereza, e dos filhos, Bruno e Anna Lívia, promovia em sábados tornados ainda mais especiais por prosa e mesa genuinamente mineiras?
Foi ali, na rua Anatalícia Ferreira da Silva (quem terá sido essa criatura, brincava eu numa reiterada sem-gracice, cujo prenome sugere desaniversários?), foi ali que, mesmo não sendo dos mais assíduos, conheci os romancistas Luiz Ruffato e Ricardo Lísias, e todo um time de poetas: Carlos Machado, Esio Macedo Ribeiro, Fabio Weintraub, Ruy Proença, Sérgio Alcides, Sônia Barros, Tarso de Melo. Foi também à sombra de Donizete Galvão que vi pela primeira vez a Eltânia André, o Ivan Marques, a Leusa Araujo, o Mario Rui Feliciani e o Ronaldo Cagiano. Faltou alguém? São tantos. Tinha, o Doni, ótimo faro para gente boa, e habilidade para combinar achados.
Melhor pôr sob reserva o "gente boa", pois também eu fui, faz quase 20 anos, fagocitado pelo carinho nunca estridente desse garimpeiro de camaradagens. Já não poderei dizer a ele o quanto lhe fiquei devendo pela suave insistência com que bateu à minha porta, num instante em que o sofrimento ameaçava fazer de mim um ser inóspito.
Até aí nos conhecíamos de raspão, e o Donizete, com livro novo, Do Silêncio da Pedra, veio para perto. Não, não era um autor a mais em busca de mãozinha na divulgação. Dentro do exemplar que me enviou, este bilhete: "A rapaziada mineira (alguns não tão rapazes assim) continuada desatinada. Um dos desatinos é insistir em publicar poesia. Não é uma coisa de louco? No caso dos mineiros, loucos mansos".
Quando vi, lá estava eu, tão prosa, infiltrado por ele num debate em torno de poesia. Na saída, um disco de Nina Simone e um toque em versos despretensiosos: "A música é um ímã da poesia / Ora faz com que a gente se desespere / quando com nota pontiaguda nos fere / Ora da imperfeição humana nos isola / quando feito um bálsamo nos consola". Daí em diante, ainda que sem grandes efusões (numa "não muito estouvada confraternização", diria melhor Carlos Drummond), seguimos encontrados.
Ao menor pretexto, ou a pretexto algum, Donizete se fazia presente também com agrados sempre certeiros. A gravura de tiragem baixa de Amilcar de Castro (era ligadíssimo nas artes visuais) aqui nesta parede. Este exemplar de Lições de Abismo, de Gustavo Corção, na edição da Agir ilustrada por Oswaldo Goeldi. Um volume de 1914 sobre Mantegna. Poemas de Paul Celan. O soneto que ele, Donizete Galvão, me dedicou nas páginas de seu terceiro livro, A Carne e o Tempo, para o qual teve a temerária generosidade adicional de me pedir um texto de apresentação.
Nos últimos tempos, era mais por e-mail que a gente se falava, ou pelo Facebook, onde eu não perdia os agridoces comentários com que Doni, cético mas apaixonado, pontuava o nem sempre edificante andamento das coisas neste mundo. Houve um dia, não faz muito, em que o assunto sendo os rarefeitos encantos físicos da capital paulista, ele cravou: "A feiura de São Paulo tem suas vantagens. Quando nos visitam, não temos muita coisa bonita pra mostrar. Então temos de conversar".
Lamento informar aos visitantes que sem este tenaz artista do convívio o papo por aqui ficou mais pobre.
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