O Estado de S.Paulo - 02/02
Todas as projeções disponíveis revelam que o crescimento global deste ano será maior que o de 2013. Mostram também que o mundo desenvolvido, liderado pelos EUA, é que vai puxar a expansão. Em vista disso, a política monetária americana está em pleno processo de ajuste, detonando um reposicionamento de fluxos de capitais que provocam impacto em diferentes países, especialmente aqueles onde problemas políticos se somam às fragilidades econômicas.
Gostaria de chamar a atenção, inicialmente, para duas questões importantes. Foi pouco observada uma decisão tomada após a reeleição da chanceler alemã, Angela Merkel, e da formação do novo governo: o país não vai mais alocar novos recursos para financiar Tesouros ou bancos de outros países da zona do euro, além do que já se comprometeu. Como consequência, a sonhada união bancária não acontecerá na dimensão imaginada e não haverá nenhuma mutualização da dívida pública (o bônus europeu) que alivie em parte as finanças dos grandes devedores.
A recuperação modesta do crescimento europeu obscureceu a decisão alemã. Entretanto, não tenho dúvida de que, se o cenário é melhor para 2014, as condições fundamentais para a manutenção do euro como moeda global ainda estão longe de ser atendidas.
A segunda decisão importante é a que parece ter feito o Partido Republicano dos EUA. Tudo indica que, após o extraordinário desgaste sofrido com o público, por sua responsabilidade no fechamento do governo americano por quase três semanas, os republicanos teriam decidido não obstruir, a qualquer custo, a resolução que permite a elevação do limite da dívida pública federal, que tem de ser votada neste mês de fevereiro. Caso isso ocorra, as otimistas projeções de crescimento para este ano podem se materializar. Bom para o mundo e para o Brasil.
Por outro lado, chamo a atenção para o grande número de países emergentes, de certa relevância, que estão enfrentando sérios problemas políticos e econômicos. Nessa lista teríamos de incluir pelo menos Turquia, Índia, África do Sul, Ucrânia, Tailândia (um país que pode se partir em dois) e, na América do Sul, Argentina e Venezuela. Os três primeiros da lista terão eleições neste ano. Os países são, naturalmente, bastante diversos e não estritamente comparáveis. Alguns deles estão em estágios medianos de crise política ou econômica, outros em estados muito avançados, quase terminais, como Tailândia e Venezuela nas áreas política e econômica, respectivamente. Entretanto, apenas a menção do conjunto já é suficiente para contaminar o ambiente econômico internacional, levando a um movimento de depreciação de ativos no mundo emergente, saída de capital e a movimentos defensivos de elevação de juros por parte das autoridades monetárias, como fizeram Índia, Turquia e África do Sul nesta semana.
Embora a situação atual seja muito menos grave que a de 2008/09, é claro que estamos vendo um movimento bastante sério, quando se considera que a reversão da política monetária americana ainda está nos estágios iniciais e o tamanho dos desequilíbrios acumulados em várias nações.
Nesse sentido, dois países são de particular importância em termos de seus impactos sobre o Brasil: a Turquia, pelo tamanho de seu desequilíbrio externo, e a Argentina, por seus laços com nosso país.
A Turquia teve nos anos recentes uma trajetória de crescimento muito positiva, atraindo a atenção dos investidores no mundo como um todo. Seu papel estratégico e a possibilidade de entrar para a Comunidade Europeia também contaram pontos nesse caminho. Entretanto, desde 2012 começou a tomar forma uma forte crise política. O primeiro-ministro Erdogan, líder do partido muçulmano (AK) que está há mais de dez anos no poder, iniciou um processo de islamização da sociedade turca, encontrando forte resistência de parte dela, especialmente de suas classes médias e profissionais, que cresceram na tradição laica que vem desde a fundação da república por Attaturk nos anos 20. Além disso, o primeiro-ministro se desentendeu com o grupo liderado pelo religioso Gullen, muito influente na polícia e no Poder Judiciário. Com isso, desde o ano passado, intensas reações aos projetos do primeiro-ministro tomaram conta das ruas. Finalmente, o ponto de ebulição foi atingido com denúncias de corrupção contra os filhos de três ministros importantes no governo. O premiê reagiu com extrema violência, radicalizando a crise e pondo dúvidas quanto aos resultados das eleições que deverão ocorrer neste ano.
Ao mesmo tempo, a posição do balanço de pagamentos turco é bastante frágil: em 2013 o déficit de conta corrente atingiu 7,4% do PIB, em boa parte financiado por movimentos de capital de curto prazo. O início da mudança da política monetária americana pegou, portanto, o país numa situação de extrema fragilidade, resultando numa forte desvalorização da lira turca até recentemente. O Banco Central do país reagiu com um enorme choque de juros, o que travou temporariamente o processo de desvalorização, mas não reduziu nem reduzirá a fragilidade do país, até que algo mais consistente se mostre no plano político e econômico.
Com relação à Argentina, a situação é mais simples, porém muito mais grave. O país vem enfrentando uma restrição cambial crescente, que se transformou numa crise aberta nestes últimos dias. Além da falta aguda de moeda estrangeira, há que se lembrar que a inflação está na faixa de 30% ao ano. A situação fiscal é ruinosa, especialmente pelo gigantesco volume de subsídios dados à área energética e pela expansão desordenada de custeio e transferências.
A gota d'água, a meu juízo, veio da parte política: por razões ainda não totalmente claras, a presidente Cristina está afastada da primeira linha da gestão governamental há mais de 45 dias. O governo está sendo tocado por um novo chefe da Casa Civil e pelo novo ministro da Economia, Kicillof, tão arrogante, quanto fraco e inconsequente. O ministro patrocinou uma desvalorização do câmbio superior a 25%, num país com uma inflação na casa de 30%, sem nenhum programa organizado na área macroeconômica, além de muita ameaça e um débil congelamento de preços.
A esta altura, não tenho dúvida, que o país tão admirado por alguns de nossos eminentes economistas (como aquele que aprendeu a lidar com a doença holandesa) mais uma vez vai bater no muro, em algum momento não muito distante de hoje.
Não é bom para o Brasil.
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