O Estado de S.Paulo - 02/02
Na década de 80, antes da abertura de mercado, época áurea do "similar nacional", uma bebida despontava na noite brasileira. Era a vodca Orloff, tida como uma versão melhorada do ameaçador destilado nativo.
"Cuidado com que você toma", advertia o narrador do comercial da bebida, insinuando ressacas terríveis: "Eu sou você amanhã".
Qual será o coquetel argentino de agora? Treze anos depois do colapso econômico que levou cinco presidentes à Casa Rosada em duas semanas, deletou 20% da riqueza nacional e fez do país um pária internacional, a Argentina voltou a tremer.
As manchetes anunciam o pileque em flagrantes quase diários. A inflação ruma para 30%. O dólar paralelo disparou, forçando o governo a desvalorizar o peso em 15% nas últimas semanas. As reservas do Banco Central baixaram para níveis críticos. O desemprego saltou e a pobreza parou de cair. O novo ministro da Economia desmentiu a crise. A situação está "perfeitamente calma", insistiu Axel Kicillof. Faltou combinar com os argentinos.
Pode ser que a segunda economia sul-americana não esteja em estado falimentar. Soprada pela demanda global por matérias-primas, a Argentina recuperou-se dos efeitos do calote histórico e cresceu ao longo da década, mesmo quando fez tudo para se sabotar. Mas com o comércio global em passo lento e receitas minguantes das commodities, a crise crônica argentina voltou e ameaça aprofundar a linha divisória no continente.
É o fosso do desperdício. De um lado, estão os países que administram bem seus recursos naturais: Peru, Colômbia e, especialmente, Chile - que, quando o cobre dispara, deposita o lucro num fundo de estabilidade. Do outro lado, estão os países de abundância, gigantes pela própria natureza e apequenados pela cultura política nanica.
É o caso da Venezuela, com a maior reserva de petróleo do hemisfério, que converteu sua petroleira, PDVSA, em caixa eletrônico para custear aventuras bolivarianas. Dilapidou a estatal e viu cair a produção em meio ao boom histórico de petróleo.
A conta melhora nos países aliados, Equador e Bolívia, que administraram melhor a bonança, mas o alerta vale para toda a região, hipotecada em minérios, petróleo e gás. Hoje, a América Latina responde por 7% a 9% do crescimento global - igual a 20 anos atrás.
A Argentina impressiona não pela crise - endêmica na região -, mas pela vocação para destruir a riqueza. Já se conhece o currículo do país. Orgulho das Américas, compete de igual na produção agropecuária com as potências mundiais. Já no século 19, aprimorou a refrigeração da carne, levando seu produto às melhores mesas da Europa. Chegou a ser a décima economia mundial em 1913 e a quarta renda per capita em 1929. Faturou cinco Prêmios Nobel entre 1936 e 1984, uma média de um a cada dez anos. E só um conto de Jorge Luis Borges poderia explicar por que a academia sueca não lhe entregou o sexto, de Literatura.
Mas aí parou. Desde então, o país nutriu uma das ditaduras mais sangrentas do hemisfério, instabilidade crônica e caudilhos de todos os manequins. Há, sim, o papa Francisco, cuja franqueza e simplicidade sacodem a conturbada Igreja Católica em boa hora. Mas, agora, o jesuíta portenho é do mundo, enquanto Argentina ainda é dos Kirchners.
Hiperinflação, hemorragia de credibilidade, crise cambial, manobras agressivas para corrigir o rumo desgovernado. Se o investidor titubeia, é só encampá-lo. Os dados oficiais estão ruins? Derrube o pesquisador e troque os índices. E se a má notícia continua, a culpa é do mensageiro. Na era K, a Argentina atualiza as convulsões e agressões que tanto desfiguraram as Américas no século passado.
Pode chamá-lo do efeito Kicillof, em homenagem ao mais novo protagonista do velho roteiro nacional. A Argentina é a América Latina de ontem.
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