O GLOBO - 02/02
Pensei: só falta o freio falhar para isto se transformar num filme de suspense. Um filme que eu decididamente não queria ver
Até hoje penso naquela viagem como uma experiência surreal. Talvez, com o tempo, eu tenha exagerado seus perigos e seus mistérios, mas na minha memória ela ficou como uma passagem estreita entre tragédia e encanto, que tanto poderia terminar em reminiscências indolores como esta, muitos anos depois, quanto no fundo de um abismo.
Tínhamos alugado um carro em Los Angeles para irmos a San Francisco pela estrada da costa. Depois de passar pela praia de Malibu, rumo ao Norte, a estrada começa a subir e em pouco tempo nos vimos numa via de apenas duas pistas, contornando as montanhas, com uma magnifica vista do pôr do sol no Pacifico à nossa esquerda. Até aí, tudo ótimo. Curvas sinuosas atrás de curvas sinuosas, mas nada que um motorista experiente, de vida limpa e confiante no seu braço, não pudesse enfrentar. Mas com a noite veio a cerração, e dentro da cerração a chuva. E eu passei a não ver nada, a só enxergar a curva sinuosa seguinte quando já estava em cima dela, obrigado a frear, com o risco de levar uma bangornada (termo de origem obscura, não encontrado em dicionários, o mesmo que chapuletada, só mais forte) de algum carro que viesse de trás, às cegas como eu, e ser atirado para a pista da esquerda, onde um caminhão gigantesco nos pegaria e nos lançaria no Pacifico, em chamas. Pensei: só falta o freio falhar para isto se transformar num filme de suspense. Um filme que eu decididamente não queria ver.
Vislumbrei, no meio da bruma letal, o anúncio de um motel. Salvação! Entramos na recepção do motel — que não era a recepção de um motel, ou pelo menos de um motel convencional. Um enorme salão atapetado e mal iluminado. Um clima fantasmagórico. Parecia que tínhamos interrompido um coquetel. Pessoas jovens e elegantes, segurando drinques coloridos, nos examinaram com divertida curiosidade. O que era aquilo? Cheguei a pensar que o acidente tinha acontecido, que o caminhão tinha mesmo nos jogado no abismo, e que estávamos no céu, ou no mínimo numa antessala. Uma moça nos sorria de trás de uma mesa que, deduzi, era onde deveríamos nos registrar. Recuamos, cautelosamente, e saímos pela porta com alguma pressa. O risco da estrada parecia menor comparado ao que nos esperava naquele saguão lúgubre — que até hoje eu não imagino o que seria.
A poucos quilômetros dali encontramos outro motel, simples e nada ameaçador. Dormimos bem e na manhã seguinte retomamos a estrada, agora sem cerração ou chuva. O Pacífico continuava no lugar, à nossa frente estavam Big Sur, Carmel, Monterrey e a bela San Francisco. A volta de carro para Los Angeles foi pelo interior, longe dos abismos, por uma estrada reconfortadoramente reta.
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