O GLOBO - 03/01
A viagem capilar do presidente do Senado precisa ter consequências. Ou seja, uma regulamentação, tão justa quanto severa, do uso de recursos públicos por representantes do povo e agentes do Estado
Digamos que um ladravaz audacioso mete a mão em seu bolso e furta a sua carteira. Para sorte sua, o espertalhão é na verdade um espertalhinho, e seu crime é denunciado por cidadãos atentos, e ele se oferece a devolver a carteira em troca da liberdade.
Não é assim que a lei funciona: ela exige punição, como castigo e exemplo. Esse princípio, óbvio e universal, aplica-se, por exemplo, aos homens chamados públicos. Por exemplo, ao presidente do Senado, Renan Calheiros. Ele simplesmente requisitou um avião da FAB para levá-lo de Brasília a Recife numa missão que nada tinha a ver com seus deveres parlamentares. Nem mesmo com seus interesses partidários.
Leitores, fiquem de cabelo em pé: o presidente do Senado deixou Brasília às custas do orçamento da FAB simplesmente para fazer um implante capilar. Como se o aumento da cabeleira fizesse dele um mais eficiente defensor do interesse público. Mais cabelo, melhor senador? É ridículo, é absurdo. Pior: trata-se de uma demonstração daquilo que Calheiros — e certamente muitos ocupantes de cargos e mandatos — acham muito natural: usar em benefício pessoal recursos do Estado.
O agora cabeludo presidente do Senado anunciou ter indenizado os cofres públicos em R$ 27 mil. Isso pode ter reduzido ou eliminado (não conhecemos o custo para o Estado de viagens capilares de senadores) o preço do voo. Mas o abuso continua de pé, assim como os cabelos da surpreendida opinião pública. Um representante do povo que compensa os cofres públicos de uma despesa absurda, mas só o faz depois que o episódio é revelado — lamento ter de lembrá-lo —, mais parece um representante de si mesmo.
A indenização depois de revelado o escândalo resolve apenas o problema financeiro. Nada impede que outros senadores ou deputados cometam abusos com os recursos do Estado. Se forem apanhados em flagrante, pagam as despesas; se escaparem ilesos, estão no lucro.
E nós no prejuízo.
É óbvio que a viagem capilar do presidente do Senado precisa ter consequências. Ou seja, uma regulamentação, tão justa quanto severa, do uso de recursos públicos por representantes do povo e agentes do Estado.
Renan Calheiros pode começar a limpar a sua ficha se apresentar um projeto a respeito no Senado. Recomenda-se pressa na tramitação: se o projeto começar a dormir nas comissões do Legislativo, a opinião pública logo se esquecerá do assunto.
E o projeto moralizador nunca levantará voo. Não faltam, na história da República, episódios semelhantes.
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