O Estado de S.Paulo - 03/01
As agências reguladoras autônomas disciplinam a atividade empresarial em setores como energia elétrica, petróleo, telecomunicações, aviação civil e saúde suplementar. Sua criação foi uma conquista jurídico-institucional. Elas são o segredo do equilíbrio econômico dos setores sensíveis e da viabilidade dos projetos de parceria público-privada.
O que elas têm de especial? A expertise técnica, a transparência e a ampla autonomia para deixar os políticos à distância. Agências decidem segundo as melhores regras de processo administrativo. Elaboram estudos técnicos para embasar decisões. Fazem consulta pública sobre minutas de regulamento e de edital. Divulgam as críticas. Discutem publicamente razões e divergências. Motivam formalmente cada um dos seus atos. No interior das agências, os assuntos não podem ser distribuídos segundo o gosto de autoridades ou interessados, mas sempre pelas regras de competência.
O Poder Executivo, especialmente nos níveis mais altos, segue outro sistema decisório, bem menos formal. Estudos técnicos - se é que existem - não são divulgados. Minutas são debatidas só internamente e com pessoas escolhidas. Divergências e contribuições permanecem em sigilo. Os assuntos podem mudar de mãos segundo a intensidade das pressões. O grande público só fica sabendo do resultado pelo Diário Oficial.
Talvez pelo ceticismo para tudo que é estatal, bem pouca gente no Brasil parece acreditar nas agências. A indiferença geral deixa o mundo político bem livre para sabotá-las quando conveniente. A abulia da opinião pública tem permitido que, mesmo contrariando as promessas legais, o Poder Executivo, com seu estilo mais solto, vá assumindo decisões regulatórias importantes.
Há alguns anos, num caso envolvendo a Agência de Transportes Aquaviários (Antaq), a Presidência da República editou uma problemática orientação. Uma empresa, insatisfeita com certa decisão regulatória, recorrera ao ministro, que não tem ascendência hierárquica sobre a agência. Indo o assunto ao presidente, este, em vez de aproveitar a oportunidade para reforçar o compromisso com a autonomia das agências, preferiu a tese de que o Executivo é mais importante, mais legítimo, tem um amplo e vago poder para fixar políticas, além da última palavra em qualquer assunto. O tom estava dado.
Recentemente, essa linha de orientação vem desestabilizando a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o setor elétrico. A modelagem dos leilões para compra de energia elétrica de novos empreendimentos de geração, por exemplo, tem sofrido a interferência do Ministério de Minas e Energia (MME). Por meio de portarias, este vem assumindo a fixação de regras que vão muito além das simples diretrizes que a legislação prevê. Com isso, perdem espaço a agência e o processo decisório mais técnico e transparente.
Outro caso é ainda mais expressivo. Nas concessões de geração de energia outorgadas por leilões no início dos anos 2000, a responsabilidade pela obtenção das licenças ambientais ficou com as concessionárias. Mas houve grande demora nos trâmites de licenciamento ambiental. Passados mais de 10 anos, muitas licenças ainda não saíram. E os empreendimentos continuam na estaca zero. As concessionárias foram então à Aneel requerendo a dilação do prazo das concessões. A Aneel reconheceu expressamente sua própria competência para o caso e deu razão às concessionárias. Mas algo aconteceu fora dos autos e a agência preferiu remeter o assunto ao MME, que não era competente na matéria. E aí o ministério decidiu em sentido diametralmente oposto ao da agência.
O fortalecimento do Estado de Direito no Brasil exige a observância das regras jurídicas. A fragilização das agências e a reversão política de suas deliberações são um caminho muito perigoso.
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