O Estado de S.Paulo - 13/10
Alguém disse que em Minas Gerais o pessoal escreve muito por falta de outra coisa para fazer. Tem a cara do Otto Lara Resende, mas não foi desse mineiro praticante que partiu a estocada.
Poderia ter sido. Eu me lembro (estava lá, como repórter da Veja) da graça com que ele alegrou a reunião decisiva de um grande concurso de contos, em 1977, da qual participavam também o Antonio Houaiss, a Lygia Fagundes Telles, o João Antônio, o Ignácio de Loyola, o Geraldo Galvão Ferraz, o Marcílio Marques Moreira e o Antonio Fernando De Franceschi.
Possuído por si mesmo, o Otto brilhava. Estava em moda gozar, como praga literária, a figura do "contista mineiro", e, esgotado pela leitura de tanto papel - concorriam mais de 13.000 trabalhos, de quase 9.000 autores -, lá pelas tantas o Otto sugeriu despejar aquela contarada, como se fossem bombas, sobre Belo Horizonte. Sejamos justos: os mineiros, não mais de 715, formavam apenas o terceiro contingente, muito atrás dos paulistas, cariocas e fluminenses, e tinham os gaúchos nos seus calcanhares. A ideia do bombardeio, em todo caso, divertiu os jurados, que incluiriam três mineiros entre os dez premiados.
Não sei como até agora não vingou também alguma gozação com os cronistas mineiros. Talvez não sejam numerosos como os contistas, mas certamente estão entre os melhores que já tivemos. Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, o próprio Otto. E também Rubem Braga, capixaba de quem nós mineiros nos apoderamos como coestaduano, com a justificativa muito razoável de que foi em Minas que ele se lançou nacionalmente como cronista, em março de 1932. De saída, afagou Belo Horizonte, cidade onde "mesmo os urubus navegam mais serenos", e derramou ternuras sobre a "mocinha feia" que, "se fosse bonita, seria linda". Rubem tinha 19 anos, e deu no que deu.
Eu poderia ter falado de toda essa turma de craques na conversa para a qual a Academia Brasileira de Letras me abriu as portas, semana passada, proporcionando-me imerecida carona na glória que, ainda quando interina, "fica, eleva, honra e consola". O tema geral era A crônica e a cidade, e, com o risco de matar de tédio os mortais e imortais presentes, resolvi focar em apenas dois cronistas cujos escritos sobre Belo Horizonte, embora interessantíssimos, nunca chegaram às livrarias.
Um deles, o Alfredo Camarate, nem brasileiro era. Nascido em Lisboa, esse camarada participou da construção da nova capital de Minas, no final do século 19, como arquiteto e engenheiro, mas a obra mais durável que deixou ali foram 54 textos nas páginas do Minas Gerais, o diário oficial do Estado, não apenas de enorme valor documental como também gostosos de ler, e que fizeram dele o primeiro cronista belo-horizontino. Amostrinha: no hoteleco onde pousou, lhe deram uma cama onde teria dormido o Tiradentes. Picado por um percevejo e pela inspiração, Camarate escreveu uma obra-prima da ironia em que se felicita por haver incorporado ao seu um pouco do sangue do mártir da Inconfidência. Pena que suas crônicas, salvas dos cupins pelo zelo de Eduardo Frieiro, até hoje só possam ser lidas num empoeirado número da Revista do Arquivo Público Mineiro.
Quanto ao outro cronista de que falei na ABL, é... Carlos Drummond de Andrade, que de 1930 a 1934, antes de se mudar para o Rio, pingou no Minas Gerais 133 delícias, as quais, como as de Camarate, você por ora não pode ler. A Secretaria Estadual de Cultura as reuniu, faz tempo (1987), num volume que não foi às livrarias. É por isso que você não sabe que Drummond, além de engravatado, era antenado em mundanidades: não lhe escapava, nas ruas de Belo Horizonte, o menor detalhe da moda, em especial a feminina, do sobe e desce das barras e decotes aos chapéus e boinas com que as belas esquentavam o inverno da rapaziada. Não foi à toa que o Ronaldo Fraga se inspirou nele para criar uma coleção.
Ei, pessoal da cultura em Minas, o que vocês estão esperando para levar o Camarate às livrarias? E você, Pedro Augusto Graña Drummond, por que diabo não deixa a gente ler as saborosas crônicas de seu jovem avô?
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