Ai, que preguiça... O Ministério Público do Rio de Janeiro quer que seja anulada uma licitação para a contratação de serviços médicos visando atender os participantes das solenidades da Jornada Mundial da Juventude, na qual o papa Francisco estará presente. A argumentação é que o Estado brasileiro é laico e que as solenidades religiosas são patrocinadas por uma entidade não pública, pertencente à Igreja Católica; e, portanto, colocar dinheiro público nesse tipo de celebração é uma violação ao laicato estatal, blá, blá, blá.
Não é necessário oferecer ao dedicado membro do parquet estadual do Rio de Janeiro algumas sugestões de uso supostamente indevido de dinheiro público com as quais ele deveria se preocupar antes de querer suspender o pagamento de menos de R$ 8 milhões para garantir aos milhões de fiéis que irão ver o papa um mínimo de assistência médica. Sim, porque a saúde e a integridade do papa e do beautiful people que irá homenageá-lo estará bem cuidada; quem está descoberto, por enquanto, é o povão.
O argumento do Ministério Público poderia ser estendido a outras áreas: o caminhão dos Bombeiros que carrega as seleções nacionais vitoriosas deveria ser cobrado da CBF, pois a seleção brasileira de futebol não representa o ente nacional Brasil; o policiamento nas cercanias dos locais de grande afluência popular para assistir a um show de rock deveria ser cobrado, integralmente, dos patrocinadores dos artistas; o desvio do tráfego, idem...
Enquanto o digno MP se preocupa com os R$ 8 milhões que irão ser gastos para atender os fiéis e os não fiéis que irão ver o papa, no Rio de Janeiro e no resto do país, outras coisas mais urgentes aguardam uma ação mais efetiva além da simples e burocrática “instauração de procedimento administrativo para apurar...”. Para ficar nas plagas cariocas, o festim dos guardanapos de Paris e os contratos anteriores que o financiaram, as viagens do amoroso cachorrinho Juquinha a Mangaratiba de helicóptero público, a corrupção miúda disseminada em todos os setores da vida pública carioca, os redutos da bandidagem intocados, onde quem cometer a imprudência ou o engano de se aproximar ou entrar corre risco iminente e real de morte, estão esperando. Outro dia, aqui no Paraná, li na imprensa que o MP iria interpelar o Atlético e o Coritiba para definirem rapidamente o local em que o Atletiba seria realizado. Espero – pelo insólito da situação – que tenha sido um infeliz equívoco da imprensa.
Esse tipo de discussão dos limites entre o público e o privado nos Estados laicos é recorrente e pode render horas e horas de discussão. A todo momento, alguma “otoridade” bem intencionada poderá se questionar: será que o dístico “Ordem e Progresso” não deveria ser retirado da bandeira brasileira, pois é uma mensagem positivista? Será que o Cristo Redentor não deveria ser demolido por ser um símbolo cristão erigido em uma terra que deve respeitar os direitos dos não cristãos? Nos Estados Unidos, há um debate secular a respeito das imagens maçônicas que adornam as notas do dólar e da inscrição In God We Trust. Afinal, como preservar símbolos de uma crença filosófica de alguns dos pais da pátria norteamericanos para todo o sempre?
Alguns sociólogos chamam esse tipo de preocupação, que parece preciosista quando existe tanta coisa errada a corrigir em um país como o nosso, de “hipercorreção”. Os adeptos seriam hipercorretos, ou seja, corretos ao extremo. O cartunista francês Pierre Chaval, um crítico ácido e mal humorado desse tipo de coisa, foi mais longe em uma de suas charges mais famosas: colocou a figura de uma pessoa com a pose solene do pensador de Rodin, mão ao queixo, meditando. E, como legenda, o descreveu: imbécil en train de se poser des questions!, o imbecil fazendo perguntas a si próprio.
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