FOLHA DE SP - 19/08
Apesar de cenas isoladas de vandalismo, protestos mobilizam a classe média insatisfeita com desempenho de vários níveis de governo
Quando se iniciaram os protestos contra o aumento das tarifas de transporte em São Paulo, com seus episódios de vandalismo dos manifestantes e de violência policial, um equívoco comum foi subestimar a ressonância que o Movimento Passe Livre (MPL) poderia alcançar no meio social.
O porte dos protestos dos últimos dias, por todo o país, e o caráter em geral pacífico das marchas deixaram patente que a depredação partiu de grupos minoritários.
Por mais que a ação truculenta da Polícia Militar paulista, na quinta-feira, tenha sido decisiva para engrossar a multidão nas ruas, está claro que a reivindicação de reverter os aumentos de tarifa se tornou o veículo de uma insatisfação profunda, ainda que difusa, sem dúvida insuflada pela mordida da inflação nos salários.
"Não são só 20 centavos" foi uma das palavras de ordem da passeata de segunda-feira em São Paulo. De fato, eram muitas as bandeiras: de críticas aos gastos com a Copa à defesa de investigações pelo Ministério Público, passando por vagos pedidos por "mais direitos".
Políticos, como seria de prever, tornaram-se alvos dos manifestantes. A presidente Dilma Rousseff (PT), os governadores Geraldo Alckmin (PSDB-SP) e Sérgio Cabral (PMDB-RJ) e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), foram criticados nos maiores protestos.
Nada disso torna menos irrealista a demanda maior do movimento, tarifa zero. Para tanto, em São Paulo, seria preciso agregar ao subsídio anual de R$ 1 bilhão outros R$ 4,6 bilhões --92% do que se arrecada com o IPTU.
Com a capacidade de investimento do Estado --em todos os níveis de governo-- reduzida a quase nada por anos de estreiteza e inépcia na condução da economia, aumentar o subsídio ao transporte nessa proporção é impraticável.
Por outro lado, suspender o reajuste (em São Paulo, de R$ 3 a R$ 3,20) é decisão política extremamente custosa, na medida em que possa traduzir capitulação do poder público perante atos violentos.
O tamanho das marchas se impôs como índice de mudança de qualidade dos protestos. Mal ou bem, a massa falou pela maioria e falou contra os poderes instituídos.
São decerto condenáveis, até criminalmente, os atos de vandalismo e a depredação a palácios (a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro foi o pior exemplo). É positivo que o MPL tente isolar e conter manifestantes violentos, como diante da prefeitura paulistana.
Registre-se também que, nos protestos desta semana em São Paulo, a Polícia Militar se redimiu dos abusos cometidos dias antes. Mesmo diante da ameaça de invasão do Palácio dos Bandeirantes (sede do governo estadual), logrou manter conduta apaziguadora.
Continua válido, nesse sentido, o princípio de que os protestos deveriam obedecer a regras e itinerários negociados com a polícia, de maneira a evitar o colapso frequente da circulação urbana.
As pessoas precisam trabalhar e chegar em casa. Não é justo que manifestações por mobilidade, a toda hora, as impeçam de ir e vir. Menos ainda que sejam expostas à violência, parta de quem partir.
De resto, as marchas não são representativas da demografia brasileira. Pesquisa Datafolha entre os participantes constatou que a maioria tem diploma universitário (77%) e menos de 25 anos (53%). Ou seja, a adesão é maior entre jovens de classe média, se não de classe média alta.
Isso não é razão para desmerecer o movimento, por certo. Não faltam exemplos, na história recente do Brasil, de transformações políticas iniciadas com manifestações desse segmento social --basta citar as eleições diretas e o impeachment de Fernando Collor.
Há muitas diferenças com as mobilizações dos anos 1980 e 1990, contudo. Esta agora tem muito de espontâneo e descentralizado, definindo-se mais pelo recurso a meios tecnológicos (redes sociais e telefonia celular) do que pela liderança exercida por organizações.
Até aqui, o movimento rejeitou a instrumentalização por partidos políticos (84% declararam ao Datafolha não ter preferência partidária). Mas só os ingênuos deixarão de reconhecer que leva água para correntes à esquerda do PT, como PSOL e PSTU --ou que possa, principalmente, vir a engrossar o apoio a Marina Silva e sua Rede.
A fluidez e a desorganização dos protestos tornam sua pauta caleidoscópica, multifacetada e cambiante. Essa é a sua força, e também sua vulnerabilidade.
Em primeiro lugar, a ausência de uma voz unificada torna a interlocução com o poder público muito difícil. Depois, a direção fragmentada abre inúmeras oportunidades para a ação de grupos arruaceiros. A falta de foco, por fim, tende a multiplicar as demandas, o que também serve para diluí-las.
Não será surpresa se o movimento acabar por esvair-se e ser eclipsado na campanha eleitoral de 2014, cuja antecipação pode agora ser vista como um sintoma de falência da política atual, tão bem representada pelo comportamento do Congresso Nacional.
Ninguém esperava que transcorresse assim, mas tal é a forma que assumiu a tantas vezes prognosticada insatisfação das classes médias com o que há de disfuncional no Estado brasileiro, após dez anos de PT no governo federal e quase duas décadas de PSDB no comando do principal Estado do país.
Como na marcha de muitas cabeças em São Paulo, é difícil prever onde esse caudal irá desembocar. Nem os manifestantes sabem.
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