GAZETA DO POVO - PR - 19/06
Na segunda-feira, os cidadãos rejeitaram as tentativas de direcionar ou monopolizar a pauta das manifestações, e sentiram-se livres para mostrar seu descontentamento com as mais diversas situações
Nunca o bordão “contra tudo isso que está aí” foi tão verdadeiro quanto nas manifestações que tomaram o Brasil na noite de segunda-feira, e se repetiram ontem em algumas cidades. O movimento que começou na semana anterior, motivado por aumentos na tarifa do transporte público em várias capitais e marcado por atos de vandalismo, sofreu uma metamorfose: dezenas de milhares de brasileiros protestaram pacificamente e apresentaram reivindicações as mais variadas possíveis – de temas locais (em Curitiba, por exemplo, a falta de táxis estava entre os temas observados nos cartazes) aos grandes assuntos nacionais, como a corrupção e a PEC 37, que deve ser votada até o fim do mês e que retira o poder de investigação do Ministério Público.
É verdade que ainda tem havido casos inaceitáveis de vandalismo, especialmente no Rio de Janeiro, onde a Assembleia Legislativa e prédios no entorno foram atacados anteontem; e em São Paulo, ontem, com depredação no prédio da Prefeitura e um carro de reportagem incendiado. Mas essas foram exceções; o tom das manifestações de segunda-feira foi pacífico a ponto de muitos pais terem levado até as crianças para presenciar um momento incomum da história brasileira, e os exemplos positivos, como o silêncio dos manifestantes curitibanos ao passar diante da Santa Casa, são os que merecem divulgação. O poder público também percebeu que não pode agir com violência contra as passeatas. A lição foi especialmente aprendida em São Paulo, depois das cenas de excesso policial da quinta-feira passada.
Em várias ocasiões, a Gazeta do Povo louvou o exemplo de nossos vizinhos argentinos, que não hesitam em tomar as ruas para protestar contra os desmandos de seus governantes. Embora ainda seja cedo para concluir que o brasileiro finalmente venceu a apatia que lhe é atribuída, os protestos revelam que o cidadão tem, sim, uma sede de participação política que vai além do voto a cada dois anos – aliás, é interessante perceber como outro bordão, o “não me representa”, dessa vez dirigido aos partidos políticos como um todo, também foi uma característica marcante das manifestações de anteontem. Ao impedir que as agremiações de esquerda monopolizassem ou direcionassem a pauta dos protestos, os brasileiros puderam mostrar livremente seu descontentamento com uma série de situações.
Mas é justamente nesse caráter difuso do movimento popular que reside uma de suas fraquezas. Se as reivindicações se mantiverem em um nível mais abstrato, a falta de um projeto consistente pode levar a uma ausência de resultados que frustre todos aqueles que tanto se empenharam – trazendo de volta a apatia, dessa vez com muito mais força. Outro risco é o de que radicais e aventureiros se aproveitem do clima de indignação generalizada para propor soluções de cunho inclusive antidemocrático, ou que se apropriem do movimento sem efetivamente representar os anseios da população que vai às ruas. É fácil comparar os protestos brasileiros com a Revolução Francesa nas mídias sociais, como se fez semana passada; difícil é lembrar que a revolta dos franceses do século 18 degringolou até chegar ao Terror.
O que estamos presenciando é uma grande oportunidade de aprendizado para o brasileiro: para que ele procure conhecer as causas e pense em soluções para as situações que o revoltam; para que ele desenvolva seu interesse pela coletividade e abandone o individualismo que tanto mal faz à sociedade; para que ele aprenda a dialogar e entender o ponto de vista de quem pensa diferente. Se a insatisfação crescente do brasileiro for canalizada para boas causas, ela será frutífera. Dissemos acima que a participação política transcende o exercício do voto, mas também as urnas oferecerão uma oportunidade para que a indignação se transforme em ação concreta. Exercer o voto consciente e se mobilizar por uma autêntica reforma político-eleitoral, baseada nos princípios republicanos e não nas conveniências da classe política, são atitudes que não deixarão os protestos nas ruas terminarem no vazio.
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