Nat Silver, o mago da estatística que previu a reeleição de Barack Obama quando até este parecia descrer da vitória, acertou mais um palpite. Com equivalente antecedência, cantou a pedra que Argo levaria o Oscar de "melhor filme"; previsão arriscada, pois filme cujo diretor não concorre ao Oscar em sua categoria sempre perde a corrida (Conduzindo Miss Daisy, vencedor em 1989, foi uma exceção). Mais com base nessa lógica do que em qualquer outra variável, colunistas e blogueiros debocharam da avaliação de Silver e dobraram suas apostas em Lincoln.
A revelação de que o envelope com o resultado seria aberto por Michelle Obama, direto da Casa Branca, reforçou a desconfiança de que Spielberg levaria a melhor. Nenhum concorrente parecia mais afinado com a atual administração do que a batalha de Lincoln pela emenda constitucional que libertou os negros da América e prenunciou a chegada de Obama ao poder.
Django Livre? Também trata de escravos, mas não tem a "respeitabilidade", a ponderosa postura histórica de Lincoln, é quase um gibi operístico, um pasticho de faroeste espaguete (dupla homenagem ao Django de Sergio Corbucci e aos longueurs de Sergio Leone), uma espalhafatosa quimera antirracista entulhada de referências cinematográficas (e uma piscadela de olho para o Ésquilo de Prometeu Acorrentado), um desabrido exercício em "whitenegroism" (a negritude radical de brancos como Norman Mailer - e, agora, Quentin Tarantino), se não politicamente incorreto, ideologicamente transviado. Ou seja, um pouco muito para ser crismado pela primeira-dama dos Estados Unidos, mesmo sendo ela Michelle Obama, diante de 1 bilhão de telespectadores.
"E se na cartela do envelope aberto por Michelle estivesse escrito Zero Dark Thirty (A Hora mais Escura)?", especulou o veterano colunista político Robert Scheer, na revista The Nation. Não seria um resultado absurdo: a caçada final a Osama bin Laden foi uma façanha timbrada por Obama e por ele assistida de camarote. Mas pegaria mal, avaliou Scheer. Poderia soar como um endosso oficial à tortura como método válido de interrogatório no combate ao terrorismo.
Àquela altura, o docuthriller de Kathryn Bigelow já perdera força na competição, difamado até por senadores democratas e aliados do presidente como um filme indigno de confiança, não tanto por fazer a apologia da tortura, como muitos insistem, mas por induzir o público a acreditar que a CIA só conseguiu chegar a Bin Laden após supliciar um punhado de jihadistas ligados à Al-Qaeda. O filme se apresenta como fiel aos fatos, mas à menor cobrança de fidelidade Bigelow e os demais envolvidos na produção se desfazem, pressurosos, do rótulo de documentário e invocam o inalienável direito de todo cineasta à liberdade de expressão e à ambiguidade.
Se documentário fosse, a personagem de Jessica Chastain, Maya, não existiria. Apesar de agentes femininos terem participado da perseguição a Bin Laden, quem durante uma década encasquetou com a suspeita de que o líder da Al-Qaeda vivia malocado em Abbottabad foi um marmanjo da agência chamado John. Suspeita-se que Maya entrou na história para satisfazer a agenda feminista de Ms. Bigelow.
Tortura houve, ao menos no início da operação, conforme revelou o ex-diretor da CIA Leon Panetta, mas nem sempre deu certo. O suposto cérebro do 11 de Setembro, Khalid Sheikh Mohammed, foi submetido a 183 sessões de afogamento simulado ("waterboarding") e não apenas escondeu a verdade como enganou seus torturadores e os desviou do caminho certo.
Depois de dois anos de bajulação eurocêntrica (O Discurso do Rei, O Artista), a Academia de Hollywood voltou a valorizar as raízes e os grandes temas da civilização e da cultura americanas: violência, racismo, sexismo, fé, esperança, superação, vingança, jingoísmo. Sem, contudo, renegar o velho maquiavelismo europeu. A condescendência à tortura é uma aceitação de que os fins justificam os meios. Pobre Maquiavel, nunca explicitou tal coisa (quem decretou, com todas as letras, que "quando o fim é bom, também são os meios" foi o teólogo jesuíta Hermann Busenbaum), mas acabou levando a fama.
No afã de aprovar a 13ª Emenda, a Lei Áurea americana, Lincoln apelou para todos os meios nos limites do lícito com o ilícito: trapaceou, comprou votos com empregos, enganou meio mundo. Em suma, o impoluto patrono da democracia americana contribuiu um bocado para aumentar a descrença do povo na classe política. Ok, a abolição não podia esperar. Há quem duvide dessa inadiabilidade, mas o fato é que as trampas deram certo, e o pragmatismo americano faturou mais uma.
Ao contrário de Lincoln, Django não luta contra a escravidão, mas contra aqueles que lhe roubaram a mulher, sua ação é puramente vingativa, um ajuste de contas pessoal, catártico para ele e a plateia, como mil vezes se viu em westerns de feitura mais prosaica. A vingança também é a obsessão maior da heroína de A Hora mais Escura. Seu ajuste de contas é com o 11 de Setembro. A morte de Bin Laden virou bônus.
A vitória de Argo caiu do céu. Previamente chancelado por vários prêmios, inclusive o Golden Globe, nenhum dos concorrentes preenchia tantos quesitos positivos. Não me refiro a virtudes cinematográficas (o filme é um thriller convencional, tecnicamente bem realizado, que só fica enfadonho no final, com aquele fabricado suspense no aeroporto), mas ao seu empenho em exaltar a eficiência dos órgãos de segurança dos Estados Unidos, a imaginação e coragem de seus agentes. Faz um curioso pendant patriótico com A Hora mais Escura, sem as arestas deste. Sua premiação, a rigor, só incomodou o governo iraniano.
As autoridades de Teerã o acusaram de fazer propaganda política e distorcer a história. Procede a queixa. A breve (e útil) lição de história que abre o filme, contextualizando a crise que culminou com a invasão da embaixada americana em 1979, não se complementa com uma narrativa à altura da complexidade da situação. Acompanhamos a crise exclusivamente da perspectiva americana, o que não seria de todo reprovável se os iranianos ("dublados" por turcos) não fossem retratados de forma tão maniqueísta, como uma horda de gente feia, pobre, ruidosa, fanaticamente religiosa e ignorante.
Como os seis diplomatas resgatados pelo agente Tony Mendez na verdade passaram na flauta pela vigilância do aeroporto de Teerã, todo aquele frisson no final foi inventado para criar suspense (de resto inútil para quem sabe como se deu o desfecho) e pôr em cena mais iranianos de má catadura, truculentos e falsamente ladinos. A coda mostrando o heroico Mendez no recesso do lar, como marido e pai exemplar, é outro clichê com endereço certo, uma concessão ao que os americanos chamam de "family values".
Em meio às ameaças de retaliação que se seguiram à festa do Oscar (o cineasta Ataollah Salmanian acenou com uma réplica cujo roteiro já estaria pronto e o roteirista Farhad Tohidi anunciou uma série de TV prestes a ir ao ar), um episódio pitoresco: antes de retransmitir a imagem de Michelle Obama premiando Argo, a TV oficial iraniana fez um photoshop no decote da primeira-dama, cobrindo-lhe braços, ombros e parte do colo, como exige a pudicícia islâmica fundamentalista. Ao menos respeitaram a padronagem do vestido original.
A consagração de Argo e o sucesso de A Hora mais Escura, na esteira de premiações recém-conquistadas pela telessérie Homeland, reafirmam o novo e surpreendente status que a CIA passou a desfrutar depois de anos e anos de vilania, de justa identificação com as mais execráveis práticas de espionagem. Essa inversão de papéis foi um legado da derrubada das torres gêmeas. As telesséries 24 Horas e Alias: Codinome Perigo não surgiram no final de 2001 por obra do acaso.
Todos os citados têm algo em comum além da restauração da imagem da CIA e da normalização da violência como modus operandi; para não falar da tortura, impunemente praticada a três por dois em 24 Horas. Maya, a obstinada agente de A Hora mais Escura, por exemplo, já no trailer lembra Carrie Mathison, a psicótica agente encarnada por Claire Danes em Homeland.
As duas imagens da CIA se espelham, complementam e confrontam em Argo: a CIA golpista que derrubou o último líder secular do Irã (Mossadegh) para devolver o poder à despótica monarquia do xá Reza Pahlevi, abrindo caminho para a insana teocracia dos aiatolás, que até hoje perdura, e uma CIA socorrista, mais próxima da Swat e daquela trupe de falsos atores poloneses tentando escapar dos nazistas na comédia de Lubitsch Ser ou não Ser, depois refilmada por Mel Brooks. A última imagem é a que fica.
Há 17 anos que Hollywood mantém estreito contato com a CIA, que aos produtores presta consultoria técnica e exerce um controle nada negligenciável sobre o conteúdo e a composição dos personagens de determinados filmes para o cinema e a televisão. Exemplos mais ou menos recentes: JAG - Asas Invencíveis, Inimigo do Estado, A Soma de Todos os Medos. Ex-agentes alugaram seu know how a Syriana, Quebra de Sigilo, O Suspeito, Red - Aposentados e Perigosos.
Desconheço quanto a CIA interferiu - se é que interferiu - no roteiro de Argo, mas como Ben Affleck é casado com a atriz Jennifer Garner, a agente Sydney Bristow de Alias e assumida garota propaganda da agência, a colaboração talvez tenha sido espontânea.
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