domingo, março 03, 2013

Alguns filmes no ar - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 03/03

“Argo” é um filme (eu ia escrevendo “um filmeco”) tão tipicamente americano que parece ter sido escrito nos anos 1950


É a Maria Amélia Mello que devo agradecimentos pela publicação da antologia da revista “Senhor”, não a Ana Maria. Peço desculpas pelo erro. Escrevi entre voos e voltas e terminei errando um nome que conhecia. Agora escrevo entre subidas e descidas às proximidades do Morro dos Prazeres, onde ensaio novo show. Muita música para definir, escolher, relembrar. Ficou rodando na memória a série de filmes que vi no avião, entre Paris e o Rio. O que me leva a filmes que vi em Salvador, antes de voar. Quase todos com indicações e/ou prêmios do Oscar. Vi a cerimônia (a palavra fica absurda quando a gente pensa nas piadas do Seth MacFarlane) pela televisão. Não entendo inglês falado com facilidade. Mas retirei a tradução simultânea, que faz a gente entender menos ainda. Perdi algumas piadas (que depois meu filho de 20 anos me contou) mas senti o ritmo. O gozado foi ver dois dos principais filmes no avião.

Dormi depois do jantar (coisa rara em voos). Acordei julgando que tinha dormido a viagem toda e que o comissário me responderia que já estávamos nos aproximando do Rio de Janeiro. Mas sua resposta à minha pergunta “Quanto tempo falta?” foi: “Sete horas”.

Liguei o vídeo e pus os fones de ouvido. Havia “comédias românticas”, “comédias”, “dramas”, “ação” e “lançamentos” para escolher. Entre estes estavam “Argo” e “Lincoln”.

Escolhi “Argo” porque julgava que veria “Lincoln” no cinema, quando voltasse, coisa que me parecia menos provável de fazer com o filme de Ben Affleck. Mal sabia eu que o sono não voltaria mais enquanto eu estivesse no avião e que, assim, eu veria “Lincoln” logo em seguida. Foi uma experiência hilária.

“Argo” é um filme (eu ia escrevendo “um filmeco”) tão tipicamente americano que parece ter sido escrito nos anos 1950. As sequências de montagem cruzada para intensificar o suspense são apertadíssimas, e os diálogos têm quick-wit, sem sombra de ironia. A gente, que está acostumado a Tarantino e Mauro Lima brincarem com isso, fica incrédulo de ver alguém fazê-lo candidamente. Affleck é um ator de má fama, certamente por sua cara inexpressiva. Ele surgiu como roteirista oscarizado, ao lado de Matt Damon, quando ainda os dois eram garotos. Depois atuou em comédias românticas com cara de envelope. Em “Argo” essa impassibilidade facial resulta, com a ajuda da barba, em convincente sobriedade de herói do mundo livre. Você torce pelo agente da CIA e é levado a aplaudir sua vitória juntamente com o elenco do filme. Como nos mais convencionais divertimentos hollywoodianos em que os bons vencem os maus (as plateias americanas são barulhentas e de fato batem palmas nas cenas em que aplausos são puxados pelos figurantes). Mas o suspense nesse filme funciona sempre. Seu lado mais infantil é convidado a torcer para que os do bem entrem no avião antes de os do mal conseguirem passar pelas barreiras. É um filme de entretenimento antiquado e eficaz. Acabei de ver o filme quase gargalhando sozinho na cadeira do avião. Mas faltavam ainda cinco horas de viagem. Botei “Lincoln”.

O contraste terminou sendo também bastante cômico. O filme de Spielberg era grave, escuro, sério. Sobretudo escuro. Parecia um americano escaldado de tanto fazer diversão tipo “Argo” decidindo provar que também pode ser grave. Tal como em “Argo”, tudo é conseguido a contento. Daniel Day- Lewis, cujo estilo britânico de atuar, fundado na composição milimétrica do personagem, parecendo que tudo começa pela roupa, pela barba, pela escolha do timbre de voz etc., até que um punk louro capaz de ter um caso de amor com um paquistanês que abre uma lavanderia, ou um homem capaz de mover apenas o pé esquerdo, ou um presidente que administra uma guerra e quer passar uma emenda constitucional abolindo a escravidão surja crível aos olhos do espectador, Daniel, eu dizia, está perfeito fazendo o oposto do que Marlon Brando faria (mas ninguém chamaria Brando para fazer Lincoln, embora ele tenha feito aquele indescritível Marco Antônio). Tommy Lee Jones é sensacional, e Sally Field também brilha. Mas o filme, embora informativo, ficou com cara de seriedade forçada.

Antes eu tinha visto “Django” e “Amour” na Bahia. Eu achava os comentários de Spike Lee chatos. Mas não me senti confortável com essa refação de “Bastardos Inglórios” com os negros no lugar dos judeus e Leonardo DiCaprio errando o francês como Brad Pitt errava o italiano — e o magnífico Christoph Waltz dando show de dicção e desembaraço. Hitler, todos sabemos que não morreu num cinema. Mas lutas de mandingos? E, no final, o mesmo fogo da vingança. Amei os sacos nas cabeças dos racistas. Ri. “Amour” parece que diminui o fascínio que Haneke exerce.

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