FOLHA DE SP - 09/12
O ponto polêmico recai sobre a qualidade das provas usadas para incriminar José Dirceu
Corre na internet, em especial nos meios favoráveis a José Dirceu, a tese de que ele foi condenado sem provas, com base unicamente na teoria do domínio do fato, desenvolvida pelo jurista alemão Claus Roxin.
Em entrevista à Folha, Roxin disse uma obviedade: a de que ninguém pode ser condenado sem provas. A frase, que terminou indo para o título da reportagem, não se referia, é claro, ao julgamento do mensalão -caso de que Roxin não tinha o menor conhecimento. Mas serviu para fortalecer a ideia de que o Supremo Tribunal Federal, aplicando erradamente a teoria, condenou José Dirceu com base em meras suposições.
Nenhuma teoria é capaz de condenar ninguém. Pelo menos desde que se abandonou a concepção medieval da "responsabilidade objetiva". A saber, a ideia de que alguém deva ser punido não pelo que fez, mas sim pelo que é. Nesse gênero de retaliação, qualquer judeu poderia pagar pelos supostos "crimes dos judeus", apenas pelo fato de ser judeu.
A teoria do domínio do fato não se confunde com a tese da responsabilidade objetiva: isso foi dito e repetido nas sessões de julgamento do mensalão.
Na névoa que se criou em torno do assunto, o fato de Claus Roxin ser alemão contribuiu até mesmo para que se jogassem suspeitas sobre a legitimidade de sua teoria.
No caso de José Dirceu, vale lembrar que as alegações finais do Ministério Público, pedindo sua condenação, nem sequer citaram a teoria do domínio do fato. Considerou-se haver provas suficientes de que era o mandante do esquema, nada mais do que isso.
O problema é que os ministros do Supremo gostam de embelezar seus votos com citações a doutrinas que, por vezes, apenas reiteram o senso comum.
Luiz Fux e Celso de Mello, nos seus votos sobre José Dirceu, estenderam-se bastante sobre o pensamento de Claus Roxin; Ricardo Lewandowski, inocentando o ex-chefe da Casa Civil, manifestou sobretudo sua preocupação de que a teoria do domínio do fato venha a ser aplicada indiscriminadamente, nas instâncias inferiores, a partir do prestígio que estava ganhando no STF.
Suponha-se, disse Lewandowski, que aconteça um vazamento de petróleo num terminal da Petrobras. O risco é que, com base na teoria do domínio do fato, terminem condenando o presidente da empresa por causa disso.
Não faz sentido, respondeu Luiz Fux. Seria preciso provar que o presidente desejou, ordenou, o tal vazamento; que tinha poder de interrompê-lo, mas não quis que isso acontecesse.
É o bom senso.
O maior problema teórico na condenação de José Dirceu, se é que podemos chamar de teórico, não está na questão do domínio do fato; a teoria nem precisaria ser invocada, ressaltou o ministro Ayres Britto, e sua condenação viria do mesmo jeito. Nem o STF inova, insistiu Celso de Mello, nesse ponto. A teoria vem sendo aplicada no Brasil há décadas, disse ele em seu voto.
O ponto polêmico, na verdade, recai sobre a qualidade das provas utilizadas para incriminar José Dirceu. Não houve nenhum e-mail, nenhuma transcrição de conversa telefônica, nenhuma filmagem, provando claramente que ele deu ordens a Delúbio Soares para corromper parlamentares.
Houve declarações de testemunhas, segundo as quais os envolvidos diretos no esquema sempre telefonavam a José Dirceu para "bater o martelo".
Houve a circunstância de que Marcos Valério se encontrou com Delúbio Soares, José Dirceu e o presidente de um banco português, na Casa Civil. O encontro seria para tratar de investimentos turísticos na Bahia, alegou-se. Investimentos turísticos? Com Marcos Valério e Delúbio? Difícil de acreditar.
Houve a circunstância de que a ex-mulher de José Dirceu obteve, por intermédio de Marcos Valério, facilidades na compra de seu apartamento. Isso coroou o conjunto probatório contra José Dirceu, disse Luiz Fux. Não teve maior importância, avaliou por outro lado a ministra Cármen Lúcia.
Cada ministro expôs suas convicções. Para a minoria, os fatos não comprovavam de forma indubitável a culpa de José Dirceu. Para a maioria, duvidoso seria achar que Delúbio Soares sozinho tivesse organizado tudo, que a negociação da emenda sobre a reforma da Previdência tivesse sido conduzida apenas pelo ministro específico da pasta, que José Dirceu teve encontros com a presidente do Banco Rural, Kátia Rabello (intermediados por Marcos Valério) e não conversou sobre empréstimos ao PT.
Quando alguns juristas reprovam a condenação por "sinais e presunções", disse a ministra Rosa Weber, há de se entender que devem ser descartados os "sinais e presunções" que deixam lugar à dúvida. Mas quando as circunstâncias estão intimamente ligadas com o crime, chegando a formar convencimentos, a ressalva não se coloca; os indícios, as inferências, têm a claridade da luz.
Não para todos, evidentemente.
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