Não raro, o escritor se funde com as palavras de que faz uso
Há mais ou menos 15 dias, li que o sempre inspirado escritor Luis Fernando Verissimo teve que baixar ao hospital. Preocupei-me tão sério quanto instantaneamente, por entender que os escritores por vocação bem merecem o qualificativo de "imprescindíveis" (termo de que se valeu Bertold Brecht para exaltar os homens que lutam a vida inteira por seus ideais). Preocupação agora atenuada com a notícia de que ele, Verissimo, já se encontra em fase de boa recuperação.
O episódio me pareceu oportuno para pontuar que os homens de letras assim esculpidos pela própria mão da natureza são artistas do vernáculo, como artistas do vernáculo são os poetas em geral. Eu mesmo já escrevi que o primeiro anjo que voou somente com as asas da palavra foi também o primeiro poeta. Donde Manoel de Barros dizer que, se as minhocas arejam a terra, os poetas arejam a linguagem. E o fato é que a prosa-poesia de um Guimarães Rosa, um Dias Gomes, um Mia Couto e um Luis Fernando Verissimo é irmã siamesa da pura poesia de um Fabrício Carpinejar, um Mário Quintana e uma Martha Medeiros, os quatro últimos, por sinal, gaúchos. Todos admirados pela sua aptidão de botar a mais delgada cintura no corpo da nossa amada língua portuguesa.
O bom dessa intimidade maior com o vernáculo é que, não raro, o escritor se funde com as palavras de que faz uso. Assim como se dá com a dança e o dançarino virtuose, a música e o seu arrebatado (por ela) compositor. Logo, o objeto a se personalizar no sujeito, o sujeito a se despersonalizar no objeto, de modo a compor um tipo de unidade que é muito mais do que a soma dos dois. Dir-se-ia uma terceira e superlativa unidade quântica, exatamente por se constituir num todo que nem parece feito de partes, ou num resultado tão virginalmente novo que também parece sem causas. E quem sai extremamente favorecido com esse tipo de fusão estética é a própria vida, sabido que a beleza em si agrega tanto valor à Existência e põe tanto conteúdo nas coisas que os antigos filósofos gregos chegavam a equipará-la à verdade, à bondade e à justiça.
Prossigo para dizer que o susto experimentado com a notícia da então combalida saúde de Luis Fernando Verissimo ainda me remeteu para antigos versos que fiz sobre a diferença entre as pessoas comuns (falemos assim) e os escritores natos: enquanto as primeiras fazem da experiência uma linguagem, os últimos fazem da linguagem uma experiência. E fazem da própria linguagem uma experiência, pelo hábito de atracar o seu estético olho no ancoradouro dessa ou daquela palavra, desse ou daquele texto, até vê-los ondear feito navio em prumo de partida. Aí é só embarcar.
Por que assim? Bem, talvez em função do que Einstein chamou de "efeito do observador", para dar conta de que o investigador mais atento de certas matérias subatômicas (prótons, elétrons e nêutrons, principalmente) bem pode desencadear reações em cada uma delas. O sujeito cognoscente a fazer, de alguma forma, o objeto cognoscível. Fenômeno que espiritualistas da majestosa altitude do indiano Jiddou Krishnamurti ou do alemão Eckhart Tolle retratariam como expressão do mais fecundo dos diálogos: aquele que silenciosamente flui entre a Existência mesma e o ser humano que para ela se disponibiliza com total confiança
ou sem qualquer nesga de ceticismo.
No caso dos homens de letras, a nítida percepção que neles estala como um raio no céu da própria consciência é de que o sangue da vida também flui pelas veias das palavras. Os mais consistentes conteúdos da vida como que a buscar o revestimento linguístico mais estético, ou o revestimento linguístico mais estético a buscar os mais consistentes conteúdos da vida, sem que nunca se saiba ao certo se tais conteúdos são uma invenção daquele revestimento, ou justo o contrário. Mas o que importa é se entregar à sedução da estrada venosa das palavras e assim transitar, em êxtase, da fosforescência dos vaga-lumes para a fulgurância das estrelas. Como sempre fez Luis Fernando Verissimo.
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