O GLOBO - 11/07
Há algumas semanas eu comecei uma coluna quase pedindo desculpas ao leitor porque iria escrevê-la de forma errática, distante da forma coesa que desejo para minhas intervenções aqui. Essa necessidade que tive de me justificar rendeu um e-mail de meu amigo Pedro Duarte, zombando de minha autoexigência excessiva e dizendo: "Relaxa, Francisco!" Dias depois, Caetano Veloso citou essa mesma coluna e, na semana seguinte voltou a citá-la, dizendo ter achado uma delícia que eu escrevesse daquele modo. Eu continuo preferindo minhas colunas coesas (que Caetano também não deixou de elogiar, para meu ainda maior contentamento), mas o fato psicológico é que, depois das palavras de Caetano e de Pedro Duarte (ele mesmo um filósofo rigoroso, que costuma responder aos conselhos de "relaxa" com um "estou tentando isso a vida inteira!"), eu me sinto liberado para escrever ocasionalmente sem tanto compromisso com o desenvolvimento conciso porém rigoroso de uma questão.
Então lá vamos nós. Passei os últimos meses assistindo à famosa série "A família Soprano", que não acompanhei na época (suas seis temporadas foram ao ar entre 1999 e 2007). Pois bem, o último episódio termina de tal maneira que demorei a entender que a série acabava ali. Seu autor optou por um "final aberto". Finais abertos são aqueles em que a trama, ou parte dela, não é solucionada. Costumam me irritar as interpretações que tentam solucionar finais abertos, como os críticos empenhados em demonstrar que Capitu traiu ou não Bentinho. Irritam-me porque forçam um texto a ser o que ele não é. Em certo sentido, todo texto é aberto. Toda obra tem uma estrutura fechada, mas um sentido aberto (exceto as obras que Umberto Eco chamou de obras abertas: essas têm a própria estrutura aberta). Finais abertos são como que uma parte da estrutura que seu autor decidiu deixar inconclusa. Querer concluir essa parte me parece uma impertinência, pois se trata de uma decisão de sentido, a que todo texto convida, justamente onde o texto não convida.
Só o que me irrita mais do que a interpretação concludente de um final aberto é o próprio final aberto. Fico com a impressão de que há uma espécie de justificativa-padrão para finais abertos: o de que "a vida é assim", na vida não são oferecidas explicações claras e certas sobre os acontecimentos, logo a arte também deve ser assim. Pois bem, em princípio eu considero um equívoco que se tome a verossimilhança como valor artístico. Já disse isso antes, ao repudiar uma afirmação de Sebald, segundo a qual um narrador de terceira pessoa onisciente, em pleno século XXI, é uma impostura. Acho isso uma tolice. O valor da literatura não se mede por sua semelhança à vida, mas por sua compreensão dela. Assim, da perspectiva artística eu suspeito dos finais abertos, que me cheiram a um modelo de relação entre arte e verdade que é uma bobagem. E da perspectiva do entretenimento eu me sinto decepcionado: não acompanhei uma série durante meses para não ter a pequena e liberadora catarse de um final qualquer.
Dito isso, devo ressalvar que esses argumentos não cabem para "Dom Casmurro". Pois no romance de Machado (que eu idolatro) o indecidível do final é motivado pela própria natureza de sua questão: o ciúme e sua tênue fronteira entre imaginário e imaginação.
Nesta semana me chegou às mãos a nova edição da revista "serrote". Não tem jeito: toda vez que sai um número novo, interrompo minhas leituras para ler seus ensaios. Dessa edição, de número 11, destaco os ensaios de John Jeremiah Sullivan, Christopher Hitchens e Jean-Christoph Bailly -- mas gostei especialmente (e isso também não tem jeito) do relato de Susan Sontag sobre o dia em que ela, aos 15 anos, foi visitar Thomas Mann. O relato, na verdade, é uma descrição de sua situação subjetiva nesse começo de adolescência, com a cabeça fervilhando de ideias e vontade de aprendizagem, mas o corpo ainda preso a condições objetivas de dependência.
Susan Sontag tem a maior curiosidade pelo mundo de que já tive notícias. Isso me fez lembrar de Caetano. De "Verdade tropical", em que ele narra sua situação de jovem na província, com apetite intelectual e existencial semelhante ao de Sontag. E da bela coluna em que ele disse supor que não gostava da infância (pelo mesmo motivo de Sontag: falta de autonomia).
Ainda nesta semana comprei o livro "Toda Rê Bordosa", reunindo as tirinhas da célebre personagem de Angeli. Há algumas edições a "piauí" havia oferecido um teaser do livro, publicando algumas tirinhas junto de um texto de Reinaldo Moraes (o autor certo no lugar certo, para dizer o mínimo). Devorados texto e teaser, esperei a publicação do volume integral. Comprei-o pensando que seria uma boa leitura para Antonia e eu relaxarmos nos intervalos dos afazeres com nossa Iolanda. Comecei a ler e achei tudo não só muito espirituoso e engraçado, como analisável. Fui anotando algumas coisas, para escrever aqui na coluna. Pois bem, hoje, quando Antonia foi procurar o livro, não o achou. Após alguns instantes, dei-me conta de que o joguei, sem querer, no lixo, ao me livrar de uma pilha de jornais antigos, embaixo dos quais a pobre da Rê Bordosa tinha ido se esconder. Antonia exigiu que eu compre outro exemplar, o que farei com prazer. Mas fiquei me devendo aqui a análise das tirinhas. Pensando bem, foi melhor; posso imaginar o e-mail que viria de Pedro Duarte, repetindo a zombaria: "Relaxa, Francisco!"
Então lá vamos nós. Passei os últimos meses assistindo à famosa série "A família Soprano", que não acompanhei na época (suas seis temporadas foram ao ar entre 1999 e 2007). Pois bem, o último episódio termina de tal maneira que demorei a entender que a série acabava ali. Seu autor optou por um "final aberto". Finais abertos são aqueles em que a trama, ou parte dela, não é solucionada. Costumam me irritar as interpretações que tentam solucionar finais abertos, como os críticos empenhados em demonstrar que Capitu traiu ou não Bentinho. Irritam-me porque forçam um texto a ser o que ele não é. Em certo sentido, todo texto é aberto. Toda obra tem uma estrutura fechada, mas um sentido aberto (exceto as obras que Umberto Eco chamou de obras abertas: essas têm a própria estrutura aberta). Finais abertos são como que uma parte da estrutura que seu autor decidiu deixar inconclusa. Querer concluir essa parte me parece uma impertinência, pois se trata de uma decisão de sentido, a que todo texto convida, justamente onde o texto não convida.
Só o que me irrita mais do que a interpretação concludente de um final aberto é o próprio final aberto. Fico com a impressão de que há uma espécie de justificativa-padrão para finais abertos: o de que "a vida é assim", na vida não são oferecidas explicações claras e certas sobre os acontecimentos, logo a arte também deve ser assim. Pois bem, em princípio eu considero um equívoco que se tome a verossimilhança como valor artístico. Já disse isso antes, ao repudiar uma afirmação de Sebald, segundo a qual um narrador de terceira pessoa onisciente, em pleno século XXI, é uma impostura. Acho isso uma tolice. O valor da literatura não se mede por sua semelhança à vida, mas por sua compreensão dela. Assim, da perspectiva artística eu suspeito dos finais abertos, que me cheiram a um modelo de relação entre arte e verdade que é uma bobagem. E da perspectiva do entretenimento eu me sinto decepcionado: não acompanhei uma série durante meses para não ter a pequena e liberadora catarse de um final qualquer.
Dito isso, devo ressalvar que esses argumentos não cabem para "Dom Casmurro". Pois no romance de Machado (que eu idolatro) o indecidível do final é motivado pela própria natureza de sua questão: o ciúme e sua tênue fronteira entre imaginário e imaginação.
Nesta semana me chegou às mãos a nova edição da revista "serrote". Não tem jeito: toda vez que sai um número novo, interrompo minhas leituras para ler seus ensaios. Dessa edição, de número 11, destaco os ensaios de John Jeremiah Sullivan, Christopher Hitchens e Jean-Christoph Bailly -- mas gostei especialmente (e isso também não tem jeito) do relato de Susan Sontag sobre o dia em que ela, aos 15 anos, foi visitar Thomas Mann. O relato, na verdade, é uma descrição de sua situação subjetiva nesse começo de adolescência, com a cabeça fervilhando de ideias e vontade de aprendizagem, mas o corpo ainda preso a condições objetivas de dependência.
Susan Sontag tem a maior curiosidade pelo mundo de que já tive notícias. Isso me fez lembrar de Caetano. De "Verdade tropical", em que ele narra sua situação de jovem na província, com apetite intelectual e existencial semelhante ao de Sontag. E da bela coluna em que ele disse supor que não gostava da infância (pelo mesmo motivo de Sontag: falta de autonomia).
Ainda nesta semana comprei o livro "Toda Rê Bordosa", reunindo as tirinhas da célebre personagem de Angeli. Há algumas edições a "piauí" havia oferecido um teaser do livro, publicando algumas tirinhas junto de um texto de Reinaldo Moraes (o autor certo no lugar certo, para dizer o mínimo). Devorados texto e teaser, esperei a publicação do volume integral. Comprei-o pensando que seria uma boa leitura para Antonia e eu relaxarmos nos intervalos dos afazeres com nossa Iolanda. Comecei a ler e achei tudo não só muito espirituoso e engraçado, como analisável. Fui anotando algumas coisas, para escrever aqui na coluna. Pois bem, hoje, quando Antonia foi procurar o livro, não o achou. Após alguns instantes, dei-me conta de que o joguei, sem querer, no lixo, ao me livrar de uma pilha de jornais antigos, embaixo dos quais a pobre da Rê Bordosa tinha ido se esconder. Antonia exigiu que eu compre outro exemplar, o que farei com prazer. Mas fiquei me devendo aqui a análise das tirinhas. Pensando bem, foi melhor; posso imaginar o e-mail que viria de Pedro Duarte, repetindo a zombaria: "Relaxa, Francisco!"
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