GAZETA DO POVO - PR - 07/03
Às vésperas do Mundial, um dos motivos realmente importantes para o Brasil sediar a Copa perde espaço para apelos de ordem emocional
A passagem da data simbólica dos cem dias para o início da Copa do Mundo provoca dois tipos de contagem regressiva. Os fãs do futebol contam os dias para o pontapé inicial da partida entre Brasil e Croácia, seleções que abrem o Mundial em São Paulo. Mas gestores públicos e esportivos já há algum tempo trabalham com um olho nos canteiros de obras e outro no calendário, pois têm bem menos de cem dias para entregar estádios e obras que deveriam compor o tal “legado” da Copa. Em Curitiba não é diferente, e ainda está fresca na memória de todos as ameaças de exclusão da cidade, feitas pelo secretário-geral da Fifa, Jerôme Valcke, em janeiro, e retiradas em fevereiro.
Entre os poucos bons motivos para o Brasil sediar a Copa do Mundo estava o legado da competição, principalmente na forma de obras de infraestrutura e mobilidade. É claro que muito antes de 2007, quando o Brasil foi anunciado como país-sede, esses dois setores já estavam em uma situação tão desesperadora que estradas, rodoviárias e aeroportos (para ficar em apenas alguns exemplos) clamavam por reformas e ampliações independentemente de haver ou não grandes eventos esportivos. Seria um insulto condicionar tais obras à realização da Copa. Mas o Mundial de futebol pelo menos surgiu como uma espécie de prazo final para que as melhorias saíssem do plano das boas intenções e dos discursos, e finalmente virassem realidade. “Até a Copa estará pronto” virou mote e resposta pronta sempre que se apontava alguma necessidade urgente.
No entanto, boa parte dos sete anos de intervalo entre a confirmação do Brasil como sede e o início da Copa foi completamente desperdiçada. Mesmo antes da definição das cidades-sede, já era certo que as portas de entrada do país, os aeroportos, precisavam de modernização – não apenas por causa do evento, mas pelo natural aumento no fluxo de passageiros. No entanto, levou quatro anos para que o governo finalmente incluísse, em 2011, os aeroportos de Guarulhos (o maior do país), Viracopos (SP) e Brasília no programa de concessões, com o leilão ocorrendo em 2012. Outros dois aeroportos que recebem vários voos internacionais – Galeão (no Rio) e Confins (em Belo Horizonte) – tiveram seu leilão realizado só em novembro do ano passado. A Infraero, estatal que segue controlando os demais aeroportos do país, corre para reformar vários deles, incluindo o Afonso Pena, na Região Metropolitana de Curitiba. A primeira impressão que turistas-torcedores estrangeiros terão do Brasil muito provavelmente será a de um país que não se preparou a tempo para receber a atenção mundial.
A lentidão em nível federal foi replicada nos níveis estadual e municipal. Mesmo considerando que as cidades-sede foram definidas em 2009 (ou seja, dois anos depois da confirmação do Brasil como anfitrião), houve cinco anos para realizar as obras necessárias, mas pelo menos no caso curitibano a máxima de que brasileiro deixa tudo para a última hora também prevaleceu. A reforma da Rodoferroviária, por exemplo, só começou em junho de 2012; o bloco interestadual foi reaberto em setembro de 2013, e até agora funciona sem os pontos de comércio e alimentação, licitados no ano passado; o bloco estadual está sendo reformado, com a promessa de ficar pronto em maio. As obras da Avenida das Torres, com seu viaduto estaiado, também desafiam o cronograma; é difícil passar por ela hoje e acreditar que estará tudo pronto a tempo para receber os visitantes.
Mas, além do legado que talvez não fique pronto para a Copa, é preciso recordar o legado que nem existirá. É o caso do famoso trem-bala ligando o Rio, São Paulo e Campinas (SP). “Nosso projeto é que esteja integralmente pronto em 2014 ou pelo menos o trecho entre Rio e São Paulo” – a promessa, de junho de 2009, foi feita por Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil e hoje presidente da República. Também o plano curitibano apresentado à Fifa em 2009 como estratégia para conquistar o direito de sediar partidas prometia para 2014 o metrô, um anel ferroviário e renovações em avenidas importantes, como a Visconde de Guarapuava e a Cândido de Abreu. O metrô ficou para depois; o resto foi simplesmente descartado.
Como a Gazeta do Povo mostrou na terça-feira, tanto a Fifa quanto o governo federal já estão deixando de lado a questão do legado para tentar conquistar o brasileiro apelando ao patriotismo e à paixão pelo futebol. Não deixa de ser uma confissão implícita da incapacidade de usar o evento esportivo para promover as melhorias tão aguardadas. Que, no momento de avaliar se a Copa realmente valeu a pena, a população saiba ver muito além da festa e dos resultados dentro de campo.
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