sexta-feira, março 07, 2014

Arsenal - FERNANDA TORRES

FOLHA DE SP - 07/03

Essa mistura de drogas tem um significado diferente da rebeldia contra o status quo na revolução de costumes


A venda de Rivotril e Lexotan no Brasil aumentou 42% nos últimos cinco anos.

Aplacar a angústia com psicoativos virou rotina corriqueira. Crianças são medicadas na idade escolar e até o luto já tem definição clínica, podendo ser suplantado com duas ou três pílulas ao dia.

O avanço da neurologia é recente. Na minha adolescência, a psicanálise era vista como a solução definitiva para o tratamento das neuroses. Hoje, o confessionário de Freud se transformou em uma terapia alternativa, quase obsoleta, no controle dos impulsos incontroláveis do ser humano.

A impressão, nesses 35 anos que me separam da juventude, é que, para o bem e para o mal, servimos todos de cobaia. A pesquisa propiciou lucros estratosféricos para a indústria farmacêutica e fez avançar a ciência, mas, aos ratos, sempre restam as sequelas.

Um dos efeitos colaterais dos novos tempos pode ser sentido na geração que adentra os 20 anos, filhos de gente como eu. Os medos, as insatisfações, entusiasmos, amores, raivas e hormônios que antes encontravam vazão no sexo, nas drogas e no rock and roll, ainda se utilizam dos mesmos instrumentos para conhecer e contestar o mundo.

Mas, além do Nirvana, dos Mutantes, da camisinha, da bebida, da maconha e do pó, bolas com carimbo de fábrica, facilmente adquiridas nas melhores farmácias do ramo, vieram se juntar ao arsenal.

Tenho ouvido casos e casos de jovens clinicamente interditados depois de sofrer o que se convencionou chamar de surto psicótico. Ao contrário da passageira, quando não fatal, overdose, comum nas minhas priscas eras, ou do démodé coma alcoólico da turma do funil, o apagão do momento lembra as bad trips do LSD, capazes de provocar curtos-circuitos cerebrais de efeito duradouro.

O surto psicótico, até onde pude entender, é deflagrado pelo abuso de excitantes e relaxantes variados: do "speedball" ao benzodiazepínico, do álcool ao THC, do MDMA ao special K. O coquetel provoca crises de ansiedade tão violentas que a internação clínica, antes bissexta, tornou-se comum.

O laudo de morte de Philip Seymour Hoffman indica a presença de heroína, cocaína, anfetaminas e benzodiazepínicos, além de outras substâncias não identificadas no sangue do ator.

Essa mistura de drogas lícitas e ilícitas, de tráfico e medicina, de cura e doença tem um significado diferente da rebeldia contra o status quo presente na aurora da revolução de costumes, e também do hedonismo niilista do pós-punk.

Cacá Diegues observa que as drogas já serviram para escapar, e até desafiar uma sociedade repressora e moralista; mas hoje, ao contrário, elas existem para ajustar o ser humano à pressão social.

Muitos amigos que antes entendiam a legalização das drogas como uma questão de livre-arbítrio, do direito de fazer o que bem quisessem do próprio organismo, agora, diante dos filhos grandes, alguns presos na ciranda de calmantes, antidepressivos e aditivos proibidos, ou não, por lei, suspeitam do poder da força de vontade das crias e defendem a circulação restrita de certos químicos.

No Brasil, a falta de um sistema eficiente de saúde faz com que o farmacêutico, muitas vezes, funcione como médico. É da cultura. A duras penas, o comércio de antibióticos sem prescrição foi coagido, mas a automedicação ainda é um costume da terra.

O elixir paregórico, tido desde os tempos da vovó menina como uma santa mesinha para bebês com cólica, contém láudano. O láudano é uma tintura de ópio largamente usada por dependentes que tentam, por si mesmos, driblar a síndrome de abstinência. Três vidros reduzidos garantem uma boa dose do mesmo vício.

No Rio de Janeiro, é comum encontrar três, quatro farmácias em um só quarteirão. Não raro, dá-se com um balconista compreensivo que vende o remedinho do neném sem receita, o comprimidinho para dormir e o Viagra do tiozinho. A demanda é grande, e a fiscalização, pequena.

Discute-se a falência da criminalização das drogas, o Uruguai já permite o porte e o plantio da Cannabis, mas a nova onda se abastece, em parte, no balcão das drogarias. Legalizar ou não, apesar de relevante, não é a questão principal.

O problema não é o crime, mas a dependência, que cresceu 42% em meia década.

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