O ESTADÃO - 09/02
Preocupa a falta de modos de políticos e magistrados no exercício de suas funções representando formalmente Poderes da República. Mas se torna um perigo político maior contestar sistematicamente decisões formalizadas de uma instituição pública. Não é o que mostram as afirmações, cada vez mais insistentes, pondo em dúvida a validade das condenações dos réus do mensalão? Em que bases se sustenta a censura de que o processo foi eminentemente político e os coitados dos réus estão sendo enviados injustamente para a prisão?
Suponhamos que o relator da Ação Penal 470 seja um antipetista roxo. Suas acusações foram sistematicamente arguidas pelo ministro revisor, depois discutidas e votadas pelo STF como um todo, inclusive por ministros que podem ser considerados petistas roxos. Espera-se ainda um novo julgamento dos réus cujos embargos infringentes foram aceitos. Mesmo que sejam absolvidos, como parece provável levando em conta a nova composição do tribunal, isso em nada afeta as penas já definidas.
Por certo, todo tribunal pode errar. No caso, porém, diversos processos foram enfeixados numa ação, até de pessoas sem ligações partidárias. Não acredito numa objetividade absoluta, mas esse julgamento tem a probabilidade de ser muito mais objetivo do que se os julgamentos resultassem de tribunais de primeira instância e, depois, retomados pela segunda instância. No mínimo dez juízes discutiram ampla e publicamente seus casos. Se foram condenados, é porque pelo menos a maioria do tribunal concordou que infringiram o Código Penal. Que aleguem inocência, em geral todos os réus o fazem, e a temporária privação da liberdade também tem a virtude de levá-los a meditar sobre as vantagens das formalidades da lei.
Afirmar que o julgamento foi eminentemente político não é, pois, ato de protesto, mas, antes de tudo, revela uma triste incompreensão do papel do Direito numa sociedade contemporânea e democrática. E nisso retomam uma velha tradição ligada à esquerda e ao marxismo.
A despeito de sua luta contra o anarquismo, o próprio Marx sempre apostou no fim do Estado. A ditadura do proletariado, como período de transição proposta depois da Comuna de Paris (1871), pensava a ditadura no sentido romano: uma delegação de poderes para resolver determinadas situações de emergência, no caso, concessão para destruir a sociedade de classes. Mas a democracia haveria de ser muito superior àquela vigente na sociedade burguesa. Como, nunca foi explicitado.
Depois da Revolução de Outubro de 1917, quando rapidamente se instalou um Estado forte e totalitário, os teóricos do marxismo se engalfinharam a respeito dessa questão. E não foi à toa que Rosa Luxemburgo criticou Lenin por instaurar o regime dos sovietes e Karl Kautsky passou para a história oficial como um renegado.
Não têm mais sorte aqueles que hoje em dia acreditam ser possível corrigir as falhas de um Estado forte graças ao recurso ao plebiscito. Essa fórmula, "Estado forte mais plebiscito", foi proposta por Carl Schmitt antes mesmo de esse extraordinário jurisconsulto aderir ao nazismo. Ele defendia um Estado total forte, plebiscitário, contra o Estado total fraco, que nascia da crise da representação democrática. Não era o que acontecia aos seus olhos com o esfacelamento da República de Weimar? Entrevia na democracia liberal as contradições que a impediam de tomar as decisões necessárias para sair do impasse político e econômico, que terminaram propiciando a tomada de poder pelos nazistas. O Estado realmente forte haveria de politizar todos os domínios econômicos, culturais, religiosos e assim por diante, sem, contudo, conferir qualquer substância à política.
Neste momento de crise econômica e política internacional, a fórmula do Estado forte plebiscitário carrega consigo uma bomba contra a democracia representativa. Todo mundo sabe que num Estado forte o plebiscito tende a ser uma farsa. Imagine-se o que seria no Brasil, cuja organização representativa nos dias de hoje se esfarela como na República de Weimar. Por todos os lados surgem protestos pelos canais menos esperados. O atual sistema político não consegue responder a eles. E assim se cria aquela situação em que se espera por um salvador da Pátria: Jânio, Collor...
O antídoto não é melhorar nossas formas de representação? Como criar instituições representativas capazes de articular as novas demandas sociais, incluídas as que filtram pela internet? Pouco adianta termos eleições regulares quando, a cada eleição, mingua a qualidade da representação. No entanto, já nestas eleições, apesar das falhas de legislação, é possível melhorar sua qualidade.
Não vale simplesmente afirmar que a atual Presidência é de esquerda e, por isso, cabe apoiá-la seja lá como for. "Ser de esquerda" hoje em dia diz muita coisa. Se 20 milhões de pessoas entraram para o consumo, cabe perguntar desde logo se isso foi associado ao fortalecimento da produção nacional, impedindo assim que essa situação se reverta. Por si só consumo não cria oferta.
Por princípio, ser de esquerda implica agir politicamente tendo em vista modificar um sistema econômico e político que cria riquezas aumentando injustiças sociais. Mas cabe aos seus intelectuais estarem sempre atentos às novas formas de um sistema que se reinventa a cada crise. O intelectual de esquerda conservador, aquele que repete fórmulas criadas há mais de cem anos, é uma caricatura.
Ser contra o Estado forte e totalitário implica pensar novas formas de representação. Ser contra o capitalismo demanda uma análise cuidadosa de como se forma agora o excedente econômico, levando em conta a clivagem dos mercados transpassados pela luta por novas tecnologias. Depois das experiências do "socialismo real", a mera supressão dos mercados me parece um ideal fora do horizonte. Como é possível, então, conciliar mercados e representação popular? Urge erradicar o defeito do formalismo e do discurso matraca. Enquanto isso, convém não cuspir nas instituições democráticas que já temos, por mais defeituosas que sejam.
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