O ESTADÃO - 09/02
Nos bancos escolares, o professor de geometria punha estridência na voz: duas retas paralelas se cruzam no infinito. O postulado é uma riqueza na cachola de meia dúzia de privilegiados, eis que para milhões de pessoas a imagem de retas correndo pelo infinito continua sendo um ponto obscuro no universo da abstração. Por isso, continua a desafiar não especialistas a curiosidade de saber quando e onde se cruzam traços paralelos, mesmo aqueles que, escapando da linha geométrica, entram na paisagem político-institucional. Eis alguns deles.
Sobranceiro, o vice-presidente da Câmara dos Deputados, André Vargas, eleva o punho fechado, forma de “cumprimentar os companheiros”, por ocasião da abertura do ano legislativo. Ao seu lado, o ministro Joaquim Barbosa, presidente do STF, que comandou a Ação Penal 470, o mais longo da história da Corte e que condenou importantes quadros do PT, hoje presos no presídio da Papuda, em Brasília. No evento solene, o gesto não combinava com a liturgia, ainda mais pelo fato de Vargas portar o segundo cargo mais importante da Casa do Povo. Muitos enxergaram na expressão estética, a par da solidariedade aos companheiros apenados, um cruzado paralelo do paranaense na cara do ministro Joaquim e o aviso de que, mesmo sentados juntos, só vão se encontrar nas lonjuras infinitas. Aviso, convenhamos, escasso de polidez.
Do alto de seu domínio na matéria, o ministro Edison Lobão garantia, segunda-feira passada, que o risco de faltar energia este ano é zero. Valia-se de dados que mostram uma sobra de energia de 1.773 MW, “valor que deve dobrar esse ano”. No mesmo dia, lia-se que o déficit de energia passará este ano de 20% nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. No dia seguinte, um apagão deixou sem energia 6 milhões de pessoas nessas regiões, incidente que, segundo o governo, não teve vinculação com a sobrecarga do sistema nem com os baixos níveis de reservatório. Será verdade? Anuncia-se, ainda, que o setor elétrico pode se transformar num dos maiores riscos fiscais de 2014 por conta do buraco de R$ 10 bilhões no Orçamento para cobrir despesas com o corte de tarifas em 2013. Já a situação das represas do Sudeste é a pior desde 1953, com 39,98% de sua capacidade, alerta o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Essas abordagens paralelas vão ter de brigar muito quando se encontrarem no infinito. A dualidade chega, agora, aos campos daquela que, por anos a fio, foi chama de civismo e símbolo de grandeza do país: a Petrobras. Que, no ano passado, registrou a maior perda de valor de mercado, em termos nominais, passando de US$ 124,7 bilhões no fim de 2012 para US$ 90,6 bilhões semana passada, em um recuo de US$ 34,1 bilhões.
Portanto, o momento não é de comemorar, brindar o sucesso. Ao contrário, o clima é de velório. E o que se vê? Pesada campanha na TV, em comemoração aos 60 anos da empresa. A Petrobras fez aniversário em 3 de outubro do ano passado, quando a fornada publicitária foi lançada. Há motivo, quatro meses depois, para se fazer loas à ex-primeira empresa brasileira, cujas ações derretem na Bolsa de Valores? As paralelas realmente não se cruzam sobre os campos de petróleo, mesmo sob a garantia da presidente Graça Foster, perfil qualificado. Mas, convenhamos, “o mar não está pra peixe”, ou melhor, o nosso óleo do mar não chega no solo em proporções almejadas. E haja gasolina importada. Em tempo: o governo Lula fez ecoar pelo território nossa autossuficiência em matéria desse hidrocarboneto. Mais um furo n’água.
A liturgia dos Poderes recomenda respeito e obediência aos ritos, normas, gestos e ações inerentes às funções que exercem. O Poder Judiciário, por exemplo, deve ser exemplo de recato. Bacon, por volta de 1620, já pregava que os “juízes devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos que aclamados, mais circunspectos que audaciosos”. Bela lição sobre as virtudes da magistratura. Por isso, é de estranhar quando altos magistrados deixam a toga de lado para usar verbos que mais condizem com o palanque político. O ministro Gilmar Mendes, um dos mais preparados da Suprema Corte, acaba de sugerir investigação sobre as doações feitas aos apenados na Ação Penal 470, por meio de campanhas por eles acionadas nas redes sociais, nas quais vê indícios de lavagem de dinheiro. É verdade que as altas arrecadações surpreenderam, principalmente quando se tem em conta o esforço de candidatos, como a presidente Dilma, que alcançaram resultados pífios quando tentaram angariar recursos pela internet. Mesmo assim, o sucesso da operação não justifica que um alto magistrado abra a boca para criar polêmica.
Antigamente, se dizia que o “juiz se pronuncia nos autos”. Hoje, a máxima se expandiu: o juiz fala pelo bem do país, pela defesa da Justiça. É evidente que o juiz, antes do escopo funcional que defende, é um cidadão e, portanto, cumprindo o preceito aristotélico de defender a polis, veste também o manto da política. Porém, continua valendo a lição do velho Francis Bacon sobre recato, integridade da função, postura de recolhimento, virtudes que dignificam a magistratura. Essa é a razão pela qual os operadores do Direito que se elevam ao altar do Judiciário precisam evitar transtornos, polêmicas, querelas, fechando a torneira do vocabulário usado pelos atores das casas congressuais. O juiz é aquele que prepara o caminho para a sentença justa, e nessa direção, qualquer verbete mal colocado ameaça abalar o pedestal da Justiça. Guardar-se de conclusões duras e evitar inferências dúbias são normas que honram a toga. As paralelas entre os espaços da Justiça e as Cortes dos juízes precisam se cruzar, aqui e agora, e não na vastidão do infinito.
Por último, a presidente Dilma reitera compromisso com a responsabilidade fiscal. Ora, esse é o nó que expande desconfiança e afasta investidores. Multiplicam-se paralelas que não se cruzam.
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