O GLOBO - 09/02
Tem sido um longo caminho até a verdade, que talvez nunca se conheça inteiramente. Agora, é um general aposentado que admite o que todos sabiam, mas é fundamental que ele confesse: que o Exército montou uma farsa para culpar grupos de esquerda pelo desaparecimento do deputado Rubens Paiva. No ano passado, registros do coronel Molinas Dias tinham revelado outro pedaço.
E tudo o que se tinha antes, para se contrapor a tão longo silêncio sobre a vida e morte do deputado, era uma carta-depoimento e um recibo burocrático. Na carta, a testemunha Cecília Viveiros de Castro relata que ouviu seu padecimento no Doi-Codi. “A noite toda eu ouvi perguntarem o nome do preso ao meu lado e o ouvi responder: Rubens Paiva, Rubens Paiva.” Havia também uma prova física, guardada por 40 anos com a família, o recibo da retirada do carro do deputado do quartel da Polícia do Exército (PE), onde funcionava o Doi-Codi.
Quando Molinas Dias foi assassinado em Porto Alegre, foi encontrado com ele documentos que detalhavam como Rubens Paiva chegou ao Exército, entregues pelo serviço de informação da Aeronáutica.
Mas tudo já se sabia. Que ele foi preso em sua casa no dia 20 de janeiro de 1971, na frente da família. Que foi no seu carro, mas prisioneiro, para a Aeronáutica. Que de lá foi para a PE. Que se montou uma farsa para dizer que ele havia sido tomado dos militares, por grupos de esquerda, no Alto da Boa Vista. Mas o depoimento para a Comissão da Verdade do general Raimundo Ronaldo Campos, que, na época, capitão, dirigia o automóvel, é mais um retalho precioso da verdade que os militares não reconhecem.
Convivemos com essas certezas não confirmadas por um tempo longo demais. A Comissão da Verdade, agora, está juntando pedaços do que foi negado ao País por todas essas décadas. É espantosa a incapacidade de o Brasil olhar para trás, reconhecer sua história, procurar sua verdade.
Ainda convivemos com Avenidas 31 de março no Brasil todo. Ou ruas, praças e colégios com nomes dos ditadores. Ainda aceitamos que as Forças Armadas nada façam para tirar, um pouco que seja, o véu que encobre os fatos vividos na história do País, mesmo aqueles militares das gerações que vieram depois. Eles seguem ainda as ordens de silêncio enviadas por seus ex-comandantes aposentados. Aceitamos que a versão fraudulenta seja repassada de geração a geração de militares, numa renovação macabra do pacto do silêncio, da mentira, da cumplicidade.
País estranho esse que aceita que não se saiba como morreu Vladimir Herzog, o que foi feito do filho de Zuzu Angel, como foram as últimas horas e que fim teve o corpo do deputado Rubens Paiva. Tanto não se sabe de tantos. O tempo já se esgotou de saber sobre esses e outros mortos e desaparecidos. Foi há 50 anos que o pesadelo começou e ele se prolongou por 21 anos. Sobrevive no silêncio das instituições responsáveis.
Gerações de brasileiros nasceram sob esse manto da mentira e do silêncio eloquente das Forças Armadas brasileiras. Quando fiz a reportagem sobre Rubens Paiva, em 2012, no início dos trabalhos da Comissão da Verdade, o IBGE fez uma conta para mim do percentual de brasileiros que haviam nascido depois da morte de Rubens Paiva: eram 68%.
Os jornalistas têm conseguido encontrar nos escaninhos da burocracia, nos depoimentos de torturadores ainda vivos, nos documentos que ficam em subsolos de ministérios ou em arquivos particulares, retalhos da história. A maioria dos jornalistas, dedicados ao resgate, estão nos dois terços de brasileiros que nasceram depois da morte de Rubens Paiva. São os filhos dos jovens daquela época; logo, logo, serão os netos. E ainda não saberemos o que devíamos saber.
A busca coletiva por respostas permanece porque é necessária. O passado só pode passar depois de esclarecido. E um País que sofre um trauma político como esse, que em 2014 completa meio século, só se vacina contra a sua repetição procurando os fatos sonegados. Os poderosos da época já não mandam mais, a ordem democrática foi restabelecida, a faixa presidencial foi passada por ombros de eleitos pelo voto direto. E, ainda assim, chaves trancam os fatos. De vez em quando, arranca-se de um arquivo, ou em um depoimento, um retalho. E nos contentamos.
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