O GLOBO - 15/02
Escravo, sobretudo nas cidades, prestava igual serviço àquele executado pelo homem livre
Os romanos os chamavam de servos, pois eram, entre os vencidos na guerra, aqueles separados para o trabalho forçado. Dez séculos depois, os germanos os chamavam de escravos, pois eram os eslavos assujeitados por eles a essa mesma condição. Servos e escravos tornaram-se sinônimos, daquele vocábulo derivando outro, serviço, a atividade prestada pelo servo e também pelo homem livre.
“Desde que o homem é reduzido à condição de coisa, sujeito ao poder e domínio ou propriedade de um outro, é... privado de todos os direitos.” Assim escreve Perdigão Malheiros em sua obra jurídica sobre o regime servil no Brasil, publicada 22 anos antes da sua abolição. O servo estava sujeito ao poder, ao domínio do seu senhor: era propriedade sua. Este podia vendê-lo ou alugá-lo. Alugá-lo a terceiro, que, como contraprestação dessa locação de coisa, remunerava diretamente o senhor do escravo. O servo não era titular do seu próprio esforço, como não são (no plano jurídico) os animais de carga. Percebia o senhor a renda do trabalho do servo, em troca de lhe assegurar mínima subsistência física, bastante a seguir ele rendendo.
O escravo, sobretudo nas cidades, prestava igual serviço àquele executado pelo homem livre — carpinteiro, pintor, etc. Porém, este último recebia a paga pelo seu serviço, e o escravo, não. Sobre a indignidade da escravidão em si, uma questão surgiu a confundir a disciplina jurídica da relação servil. Materialmente, nada distinguia a locação de coisa — o serviço prestado pelo escravo — da locação de serviço, assim denominada a prestação de serviço (de igual serviço, inclusive) pelo homem livre. Por vezes, mostrava-se o escravo mais habilitado, agravando a iniquidade da regra jurídica a fazer tal distinção, que só subsistia devido ao regime servil, cuja abolição entre nós tardou.
Destinar, compulsoriamente, a terceiro, à pessoa física ou jurídica, ou, ainda, ao Estado a paga pelo serviço prestado por qualquer trabalhador é reviver uma das formas nefastas do regime servil: a expropriação do labor alheio — do esforço físico, intelectual e psíquico que permite ao homem livre consagrá-lo à sua realização e aperfeiçoamento existencial.
O Estado cubano não pensa assim, ao apropriar-se da renda do trabalho dos médicos, que inscreve na sua pauta de exportação. E tampouco o governo brasileiro, que cumpre as condições desse negócio, ao beneficiar-se dos serviços aqui prestados pelos médicos cubanos.
O Brasil precisa de mais médicos, assim como de mais professores etc. E, também, de mais atenção da sua sociedade, pois a complacência do governo com regras transviadas do regime servil, sob quaisquer formas insinuadas nas relações humanas, corrói o espírito de liberdade que anima a nossa imatura democracia.
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