O GLOBO - 23/12
As mudanças na saúde em 2013 foram poucas e lentas. O ano se encerra com a aprovação pela população do trabalho dos médicos cubanos na atenção básica, aumento dos investimentos públicos para empresas de planos privados de saúde e perspectivas objetivas de redução do orçamento para o SUS. Tais variações não desataram os nós do sistema de saúde brasileiro, mas deixaram tudo mais claro. As ações que têm a intenção de melhorar a situação das cidades sem médicos calaram o discurso sobre o SUS maravilha. E o apoio aos empresários, via alivio fiscal e empréstimos, elucidou a fragilidade do setor assistencial privado. Não estava tudo ótimo nem no público, nem no privado. Tratou-se, então, de encontrar soluções diferenciadas para os problemas de atendimento dos classificados como pobres e como ricos.
Decretos, portarias e normas foram expedidos para ampliar o acesso dos pobres a médicos contratados e garantir coberturas, mediante estabelecimento de prazos para o agendamento de consultas, para quem está vinculado a planos de saúde. Para oficializar duas políticas de saúde em um país regido por uma Constituição que inscreve a saúde como direito universal e contratar médicos estrangeiros como estagiários-estudantes, contornando a legislação trabalhista e evitando simultaneamente o aumento do orçamento para a saúde, certamente, foi preciso muito esforço.
No entanto, mais médicos para atender no SUS e recursos para planos privados não são uma salvaguarda para o futuro. Os problemas insistem em reaparecer, é só conferir a pesquisa de opinião, divulgada em novembro, para verificar que 52% da população consideram que a saúde é a área de pior desempenho do governo. O saldo de políticas de agraciamento de um pouco mais para cada lado não é necessariamente positivo quando é necessário reduzir desigualdades. A insistência na emissão de políticas de saúde distintas para pobres ou ricos, no momento em que o fracasso dos sistemas segmentados é notório, é um erro.
Ninguém discute a legitimidade de governos eleitos. Tampouco se desconhece a oposição implícita ou explícita da parte conservadora da sociedade às políticas sociais efetivamente universais. O que suscita indagações é se a motivação de acentuar a fragmentação da já precária rede de serviços existente ocorre em razão do desprezo ao vasto conhecimento acumulado a respeito do funcionamento de sistemas de saúde, do improviso ou do puro pragmatismo?
Hoje em dia, as doenças prevalentes no Brasil já não são aquelas tradicionalmente associadas à pobreza. As principais causas de adoecimento e morte são câncer, diabetes, violências, doenças coronarianas e transtornos mentais. Contudo, a dengue e outras patologias infectocontagiosas não desapareceram. Essa condição de polarização, de convivência de padrões de morbidade que foram superados em países desenvolvidos, com desafios atuais como o aumento de acidentes e excesso de peso requer a oferta de ações de saúde em diferentes âmbitos setoriais e níveis de intervenção. Um sistema de saúde em país continental que conta com poucas ilhas de excelência e muitas unidades precárias não consegue corresponder às expectativas que justificam sua existência.
O aprofundamento da separação entre ricos e pobres não é a única nem a melhor opção para melhorar as condições de saúde. Defensores sérios e tenazes da orientação pelo mercado sabem e nunca esconderam que o objetivo de uma política que gradua o acesso segundo critérios socioeconômicos, e não clinicoepidemiológicos, é a livre escolha e não a redução das doenças. Um sistema de saúde que não prioriza a saúde é diferente daquele que visa a assegurar a liberdade de compra e venda de procedimentos médico-hospitalares. Por essa razão, a pergunta sobre as chances de misturar os dois tipos de sistemas não admite respostas teóricas. As experiências mundiais indicam que a inclinação igualitária faz muita diferença. A determinação da farmacêutica britânica GlaxoSmithKline, anunciada recentemente, de não pagar mais para médicos que promovem direta ou indiretamente seus produtos pode estimular uma mudança radical de duas práticas: a do pagamento de profissionais que promovem ou receitam determinados medicamentos e outros procedimentos e a remuneração de representantes de vendas de acordo com o número de prescrições médicas.
A saúde no mundo está mudando, a iniciativa da Glaxo não é apenas um despertar ético, tem sentido prático, porque representa um pedido de desculpas às autoridades chinesas que acusaram a empresa de pagar viagens para médicos participarem de conferências e palestras que nunca aconteceram. Mas significa também uma antecipação aos efeitos de uma cláusula do Obamacare que regulamenta o registro e a divulgação ampla pelo governo americano dos pagamentos realizados por empresas produtoras de insumos aos profissionais de saúde. No Brasil, o debate sobre a saúde ainda está demarcado por oposições meramente ideológicas. Basta olhar para fatos positivos, como a redução da mortalidade infantil, e negativos, do não alcance da meta do milênio da mortalidade materna aos dramáticos represamentos de pacientes em unidades pré-hospitalares inadequadas para tratamento de casos graves, para entender que os sucessos foram obtidos com recursos e gestão, e os fracassos são uma consequência da retração do empenho para alterar a realidade do acesso e a má qualidade da assistência.
A metáfora do espirro e da pneumonia utilizada pela presidente Dilma para se referir à imunidade do Brasil frente à crise econômica dos EUA poderá ser lida de trás para a frente no que diz respeito à saúde. A reforma do sistema de saúde americano, que ao mobilizar opiniões divergentes abalou a popularidade do seu principal condutor, chega aqui como um respingo imperceptível. Tudo conspira para que a agenda da saúde em 2014 requente pequenas escaramuças sobre mais médicos cubanos e graúdas concordâncias acerca da concessão de isenções fiscais para as empresas e indústrias setoriais. Contudo, as eleições têm o mérito de dissolver convicções. As certezas fossilizadas sobre as benesses para o desenvolvimento não resistiram às evidências sobre os benefícios da aprovação da exigência de airbag e freios potentes, em um país que segue incentivando o transporte individual inseguro.
As chuvas, desabamentos, uma nova epidemia de dengue e a inexpugnabilidade das barreiras assistenciais são sinais de céu turvo. Porém, a entrada em cena da saúde nas manifestações em junho, a imensa solidariedade com as manifestações dos professores pela melhoria da educação, o ativismo do Poder Judiciário e do Ministério Público na defesa do direito à saúde e o controle dos orçamentos por conselhos da sociedade civil e órgãos especializados tornaram visíveis horizontes efetivamente democráticos. A previsão para 2014 é a de elevação da temperatura dos debates, com o deslocamento da massa de ar do pessimismo travestido em arte do possível. Juízo, sorte e muita energia para pensar e implementar um projeto saudável para o Brasil.
Um comentário:
Fiquei extremamente tocado com a lucidez e a pertinência do texto da professora Ligia Bahia publicado no jornal O Globo desta segunda feira _ 23/12/2013. Tomara que as autoridades com outorga referendada pelo povo brasileiro e com poder de decisão, tenham a competência de mudar para melhor o triste quadro real da saúde brasileira...ainda há tempo de tirar o país da UTI!!!
Postar um comentário