FOLHA DE SP -19/11
A psicanálise não pretende ser a única abordagem para o autismo. Mas não é admissível que seja excluída de um campo no qual atua há 90 anos
Em resposta ao artigo de Nilde Franch ("Autismo e psicanálise", 13/9), presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, os autores Del Rey, Vilas Boas e Ilo ("Análise do comportamento e autismo", 25/10) afirmam que há um desconhecimento em relação à terapia comportamental. Se isso ocorre, vale para ambos os lados.
A psicanálise não nega que o autismo seja um problema de desenvolvimento, no qual fatores genéticos estão envolvidos. Concebemos o desenvolvimento como um processo não-linear complexo. Ainda que os genes tenham um papel, a sua expressão se dá na interação com o ambiente, como bem ilustram os estudos de epigenética.
No autista, o resultado é uma dificuldade básica em se relacionar com as pessoas, o que o impede de usar a ligação com os pais para a regulação emocional e de se desenvolver no formato relacional, adquirindo um "radar social" como baliza.
Um dos argumentos da réplica é que as estereotipias do autismo se devem à falta de repertório e de integração. Existe tal deficit, mas ele é secundário ao prejuízo central na capacidade de se relacionar. Ainda não se conseguiu demonstrar um defeito genético específico que cause os sintomas: o deficit social é o cerne, e várias das sintomatologias são consequentes ao mesmo.
Por meio de recursos técnicos próprios, o trabalho psicanalítico objetiva reativar os caminhos do desenvolvimento relacional e compartilhar estratégias com os pais. Elas são obtidas a partir de uma compreensão da mente específica da psicanálise: a mente como um "órgão" que evoluiu, ao longo de nossa história filogenética, para permitir sobrevivência em nosso nicho ecológico, o grupo social --que é, para a criança pequena, seus pais.
Uma das tarefas centrais de tal órgão-mente, o gerador de nosso comportamento, é processar emoções. E as emoções são, basicamente, relacionais. Para ajudar os pacientes no processamento de tais emoções, buscamos conhecer, em cada um, o estado de mente que gera seu comportamento, o que envolve descobrir como ele lida com, ou evita, as emoções relacionais.
O texto também critica que patologias sérias sejam abordadas por tratamentos não comprovados cientificamente. Há certamente dificuldades metodológicas para desenhar pesquisas longitudinais que comprovem o resultado de psicoterapias. Mas elas não são insuperáveis, o que é mostrado por vários estudos em curso, um deles conduzido na própria Sociedade de Psicanálise.
Além disso, o método do estudo de caso foi e continua sendo de extrema importância nas ciências médicas; há mais de 230 artigos nesse molde na base de dados do "Psychoanalytic Electronic Publishing".
A dificuldade na realização de pesquisas de resultado não afligem só a psicanálise; mesmo as que avaliam outros tratamentos sofrem com problemas e insuficiências metodológicas, como amostras muito pequenas e outros vieses.
Não se trata de um ensaio clínico em que serão comparadas medicações e seus efeitos, mas de um transtorno complexo, de enorme diversidade e que, provavelmente, abriga quadros com origens diferentes.
A psicanálise não pretende ser o único caminho para a abordagem dos transtornos autísticos; tal postura seria religiosa e contrária à sua natureza científica. Mas também não é admissível uma "religião" que determine a exclusão da psicanálise de um campo no qual ela tem 90 anos de experiência, já que Melanie Klein trabalhou com sucesso uma criança autista na década de 20, antes até da descrição feita por Leo Kanner.
Sejamos humildes e entendamos que pouco sabemos ainda. A psicanálise admite que o paciente é uma pessoa desconhecida que tentaremos compreender, usando nossa mente humana e nossa experiência científica, para trazê-lo para o grupo social, com a ajuda da família e de outros profissionais.
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