O GLOBO - 19/11
Dirceu e Jefferson gastaram 20 anos se construindo como inimigos. Um era sanguíneo na proclamação, outro frio na dissimulação. Odiavam-se. No final, perderam
Passaram-se nove anos desde aquela noite no meio do Cerrado em que partilharam codornas recheadas, harmonizadas com um Don Laurindo especialmente encomendado em Bento Gonçalves.
Celebravam um pacto com duplo lastro: ao guichê do partido vencedor da eleição presidencial seriam direcionadas as dívidas assumidas pelo outro partido na campanha, com um bônus de nomeações em áreas-chave dos ministérios, empresas e fundos de pensão estatais.
Quem recebia se alinhava ao Palácio, sob compromisso de abrigar os dissidentes da oposição enviados do outro lado da Praça dos Três Poderes.
Projetavam a construção da “maior base aliada da História republicana”. O partido governista elegera 91 deputados federais. O outro saíra das urnas com 26. Chegaria a 56, garantindo o conforto do governo nas votações da Câmara.
A noite rolava suavemente festiva, no compasso de bossa nova ao piano. Talvez fosse diferente, se observassem a cena que protagonizavam com o olhar frio que exercitavam no palácio e no Congresso. Logo concluiriam que alguma coisa — ou absolutamente tudo — estava fora de ordem.
Sobravam motivos. A começar pelo enfoque da política como mercado, no escambo de votos no Congresso por dinheiro e cargos de confiança na administração direta (somavam 19 mil em 2003, em outubro chegaram a 92,4 mil).
Na sobremesa ainda não haviam explorado alternativas para empresas estatais e fundos de pensão — estes sempre “estratégicos”, pelo potencial de negócios, pela capacidade de privilegiar aliados e atrapalhar adversários, e, ainda porque detêm a garantia de vagas bem remuneradas nos conselhos e diretorias de 80 das 100 maiores empresas privadas do país.
Eram cinco homens na sala. Dois gastaram as últimas duas décadas se dedicando à construção como inimigos. O fascínio pelo poder os levara à luta, o personalismo derivara no confronto pessoal desde a CPI de Collor/PC Farias.
Um era sanguíneo na proclamação, outro frio na dissimulação. Odiavam-se. Um via no outro o demônio a ser publicamente exorcizado em futuro próximo. Agora, ali estavam, juntos e sorrindo. Como solista seduzido pela partitura do poder, um deles cantou “Eu sei que vou te amar”, de Tom & Vinicius.
Claro, tinha tudo para dar errado. E deu.
Na semana passada, Roberto Jefferson, ex-deputado federal e líder do PTB, escreveu no seu blog: “Nem tudo está perdido. Há oito anos denunciei ao País o maior escândalo que jamais presenciei no Planalto Central desde que me tornei deputado. Tudo realizado por quem, por décadas, apontou o dedo para muitos, acusando-os de corruptos, dando início à nefasta judicialização da política brasileira. Fui cassado e tive meus direitos suspensos por dez anos; ontem, a Corte Suprema do meu país decretou minha prisão. Estou satisfeito com a decisão? Mentiria se dissesse que sim; conforta-me, porém, a crença de que a política brasileira, daqui para a frente, pode ser melhor.”
Mais tarde, também via blog, foi a vez de José Dirceu, ex-deputado, ex-presidente do PT e ex-chefe da Casa Civil no governo Lula: “Vou cumprir o que manda a Constituição e a lei, mas não sem protestar e denunciar o caráter injusto da condenação que recebi. Ainda que preso, permanecerei lutando para provar minha inocência e anular esta sentença espúria, através da revisão criminal e do apelo às cortes internacionais.”
O longo duelo, sublimado naquela noite primaveril de 14 de outubro de 2004, chegou ao epílogo nove anos depois: perderam.
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