terça-feira, novembro 19, 2013

Literatura de celular 1 - MARCUS FAUSTINI

O GLOBO - 19/11
‘Vou copiar todos os SMS que mandei para você ao longo dos anos, imprimir tudo e sair vendendo na rua’


1. Faltam poucas horas para chegar a barca de volta ao litoral. Fiz esta fuga para sair fora, ficar longe, ir além. Mas minha cabeça, fora de cobertura, você conhece, impossível. Se aqui na ilha tivesse sinal de celular te mandava uma mensagem falando dessa saudade do teu cheiro. Engraçado... Escapo e penso mais. A parada é que a ilha disparou a cabeça e cansou o corpo, jogou essa minha mania de lembrar das coisas direto para o nosso primeiro mês. Aquele teu riso de final de boca depois que revelei que ensaiava as frases das primeiras conversas ao telefone pra ser mais certeiro, por não ter créditos suficientes. Esse nosso amor tá marcado em todos os celulares que tive.

2. Comprei um cordão de uma hippie, ela tinha a cor dos teus olhos, extrato de própolis com gengibre, deve ter sido isso que me fez colocar você na ilha inteira. Que merda que eu fiz. Vou ter que voltar para o Rio e trabalhar em dobro no táxi para pagar os custos dessa viagem e nem tirei você da cabeça, nem aquela menina do forró, suor perfumado no quadril, conseguiu fazer eu ficar 24 horas sem pensar no passado. Queria mesmo era mandar uma mensagem agora, falando isso tudo. Vai ficar tudo a salvo na tela de mensagens pra você.

3. Estou preocupado com esse meu esquecimento das palavras, essa dor no corpo, essa secura na língua. Sei que não estou doente, com defeito no corpo. É a tua ausência, é saber que vai ser assim a partir da minha volta para a cidade. Será que ainda tenho espaço livre no cérebro para me ensinar que posso começar a sentir tudo outra vez? Vai ser foda ter que precisar de uns três anos para esquecer completamente você. Vou copiar todos os SMS que mandei para você ao longo dos anos, imprimir tudo e sair vendendo na rua. Fazer de cada mensagem um pedaço. Vou oferecer, contando a nossa história. Pra ver melhor, com a reação deles, pra entender mais o que aconteceu comigo. Preciso voltar e usar essas coisas antigas, porque eu não consigo achar uma palavra, uma frase que acalme essa secura na língua. Vão me chamar de hippie que fica vendendo SMS e contando a história de um amor. Pra eu estar tendo esse tipo de pensamento é porque devo estar muito doente. A barca que não chega. Ausência dela é anúncio da tua.

4. Printei no meu celular a tua postagem no Facebook: “como entender minha existência se o outro não é mais espelho?”. Não entendi nada! Você desaparece e escreve um lance desses. Sei que sou lento de entender as coisas, mas esta frase deveria ser minha. Passando a digital na tela do telefone vi que estou chegando a quase mil imagens que tenho sobre você. Fotos, posts printados, mensagens salvas, gravações. Tenho uma enciclopédia sobre você. Agora entendo por que me deu de presente este maldito celular e no mesmo dia me ensinou a usar. Era uma armadilha para monitorar o meu modo de ver, de estar com você. Um pedaço teu comigo. Um espelho!!! A merda do espelho que você escreveu. Eu deveria jogar este bagulho no mar, parado na proa da barca para Mangaratiba. E imaginar os teus gritos de socorro no afogamento dos restos teus que carrego comigo.

5. Hoje não peguei nenhum passageiro no táxi. Ninguém. Nem o americano que levei até a escadaria do Selarón, que não parava de perguntar sobre a morte dele; nem a menina-GPS que não parava de falar os nomes das ruas que eu deveria seguir; nem aqueles olhos fixos na minha nuca, que não me lembro se eram de homem ou mulher; nem a vontade de largar o carro na Praça das Nações e pegar o teleférico do Alemão para almoçar no quilo da estação do Adeus. Não existiu ninguém. Nenhuma vontade. Era como estar só. Passei o dia perguntando “qual o destino?” — e depois me danava em pensar numa forma de entender o teu desaparecimento. Joguei o celular no banco do carona. Ele foi meu único passageiro durante a noite. Ele era você. Era o efeito do meu esforço de atenção esperando o toque personalizado que você carimbou na minha cabeça. Nada aconteceu, nem passageiro, nem toque. Mais um dia, desde que eu cheguei da ilha, mais um dia que o tempo nem sei se anda ou não anda.

6. Desconfio, ao apagar uma foto sua, que aquele movimento da imagem sendo sugada em direção ao ícone da lixeira do meu celular é um exercício necessário de repetição. Todo esse amor-conteúdo deve ser derretido. Nada deve ficar. Mas vou deixar essa foto tua, de corpo cortado pela metade on-line. Ela contém um espelho, essa metade que falta. Se você encontrar, a outra metade tá comigo. Volta! http://instagram.com/p/g2lOoaH6X4/.

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Na terceira terça do próximo mês, mais um pedaço desta ficção. As imagens dela sumirão do celular dele.

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Na próxima terça, os novos “baixos” inventados pela juventude popular na metrópole. Maré, Nova Iguaçu, Bar da Cachaça etc.

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