O Estado de S.Paulo - 24/11
Qual o problema em remexer lembranças, dizia meu amigo Geraldo Mayrink, se daqui a pouco vamos esquecer tudo? Não dá para deter o derretimento da memória. Mas ainda me recordo, acredite, de que na semana passada, a propósito de Moda Intuitiva, delícia de livro da Cris Guerra, desovei nesta página umas histórias catadas no meu arquivo Indumentária. Uma blusa vermelha, por exemplo, no tempo em que ousadias cromáticas da parte de indivíduos do sexo masculino causavam espécie em Belo Horizonte. Desastradamente, posso ter passado a imagem de um vanguardista do guarda-roupa que nunca fui. Minha mãe, se viva estivesse, estaria morta. Envergonhada, me incitaria a remediar a má impressão com recordações menos acintosas.
É o que não falta. Em nossa casa havia, há ainda, uma instituição chamada "os três mais velhos", na qual, por ordem de chegada, ocupo a segunda posição, a pequena distância do Rodrigo e do Otávio. Trio que, na infância ao menos, primava pela elegância sóbria tão ao gosto dos mineiros. Vestíamos roupas idênticas, que para ocasiões festivas podiam ser camisa, calças curtas e meias três-quartos, conjunto cuja alvura era quebrada pelo azul-marinho dos cintos, suspensórios e sapatos. Assim trajados, comparecíamos a festinhas de aniversário. Mande os três mais velhos - o convite vinha em bloco. Ou os três mais novos. Um dos meus primos se queixava de nunca ser chamado, pois era o quarto entre sete irmãos.
Destoávamos da turba, e não só pela fatiota: ninguém nos via avançar nas bandejas de doces e salgados. Wanda, seus filhos são tão educados!, pasmavam as mães dos vândalos. Mal sabiam elas que em casa a mamãe nos havia empuxado um pratão de sopa.
Houve tempo em que o figurino dos três meninos se completava com um corte de cabelo idêntico ao que o Ronaldo Fenômeno ostentaria décadas mais tarde. Com aquelas moitinhas no alto do coco rapado, éramos também nós uns fenômenos. Obra do Seu José, barbeiro em mais de um sentido, que atendia em domicílio com seu instrumento manual, nheco, nheco, nheco. Mamãe não aprovava as moitinhas, mas era ela bobear e o Seu José criar o fato consumado. "É o corte que lhes assenta", justificava ele, sorridente.
Era costume da classe média levar as crias, com roupa de festa, a um estúdio fotográfico, para a produção de imagens caprichadas. Em vários deles havia um genuflexório onde meninos e meninas em trâmites de Primeira Comunhão se ajoelhavam de mãos postas para receber de um Cristo cenográfico uma simulação da hóstia inaugural. Os filhos da dona Wanda e do doutor Hugo escaparam dessa encenação. E também, se bem me lembro, da exposição pública num "quadro de formatura" que a cada dezembro as faculdades entronizavam nas vitrines do Centro da cidade. Em eras anteriores à nossa, quando nada favorecia a paquera, aqueles quadros coalhados de fotos tinham o objetivo nunca explicitado de permitir que as moças contemplassem os moços sem passarem por assanhadas, de tal forma que pudessem, quem sabe, pôr na alça de mira um futuro marido.
A certa altura dos anos 50, meus pais compraram uma câmera suíça do tipo "caixote", marca Mithra, modelo 1947, cujo olho metálico, em piscadelas velocíssimas, capturou praticamente todas as imagens de nossa família durante aquela década e um pedaço da seguinte. Já estava aposentada quando comprei uma Olympus Pen, que de cada quadro fazia duas imagens, permitindo "bater" 72 fotos com um filme de 36 poses.
Sentindo-me o próprio fotógrafo do Blow Up, de Antonioni, saí disparando por aí. Até bolei uma fotonovela, protagonizada por meus irmãos Marcos e Maria Elizabeth. Já não me lembro do enredo, mas a última foto permite concluir que o Marcos, conquistador sem peias (refiro-me ao personagem), teve punida a sua predação sexual, pois acabou às voltas com uma paternidade indesejada: perplexo, ele tem nos braços um bebê de mãe suicida.
Nenhum de nós, fotógrafo e atores, perseverou no ramo - o que, no caso deste cronista, por certo não constituiu perda para a arte fotográfica, e menos ainda para a dramaturgia nacional.
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