O GLOBO - 11/09
A História não é um campo de exatidões. Para muitos essa é parte fundamental de seu encanto e renovação. Para outros, em busca de "objetividade" este é um aspecto desesperador do campo. Trata-se de um debate sempre aberto - pronto para releituras a partir de novos documentos, abordagens, metodologias e interesses. A História é, ainda, estimulada, ou calada, pelos próprios acontecimentos que serão, mais tarde, matéria- prima de suas narrativas.
Devemos, contudo, fazer uma advertência: passível de releituras constantes, as narrativas históricas são rigorosas. Há uma comunidade científica que avalia, por meios múltiplos e públicos mecanismos, o seu valor heurístico. As releituras são sempre positivas e bem-vindas, porém devem ser rigorosas e a veracidade (não, "a verdade") testada e arguida.
A História do Tempo Presente, aquela que nos é imediata, dentro do alcance de nossas próprias vidas é, por isso mesmo, ainda mais difícil, e "aberta" ao contraditório. É este o processo que se abre nas páginas do GLOBO em face à História das ditaduras contemporâneas.
No caso brasileiro, de forma muito tardia, a História está sendo lida e relida neste momento. Seus documentos estão longe de ser totalmente expostos ao escrutínio dos historiadores ou ao interesse da sociedade. Neste contexto, de um "passado que não quer passar" O GLOBO publicou um editorial, no âmbito do projeto "Memória" reconhecendo que apoiou o Golpe de 1964 e, este é o ponto fulcral, "que isso foi um erro" Aqui, aparentemente não há novidades. No campo da História, inúmeros trabalhos já apontavam, em detalhes, o apoio do GLOBO ao golpe civil-militar que derrubou o presidente constitucional, eleito, e referendado num plebiscito democrático. O novo, e bem-vindo, foi o reconhecimento de que isso foi um erro.
Ao fazer este reconhecimento o editorial esclareceu as razões: o medo de golpe de esquerda dirigido "pela radicalização de João Goulart" o ambiente da Guerra Fria (1945-1991), a quebra da hierarquia militar e, enfim, a defesa do Congresso Nacional e da "Justiça" Aqui, mais uma vez, começam os problemas: digo mais uma vez porque a narrativa do editorial do GLOBO não é nova, mas repete versões não só da época do próprio Golpe, como ainda, é bom dizer, de alguns historiadores. No entanto, a pesquisa acadêmica, reconhecida no campo por seu rigor e tratamento das fontes, não con; segue admitir como provado: i. que João Goulart tramava um golpe de Estado, justificando (como é corrente nestes casos), um (contra)golpe preventivo; ii. Que a hierarquia militar estivesse em risco, ao menos por elementos "externos" à hierarquia das FFAA. Para exemplificar a "radicalização" volta-se ao "fantasma" do Cabo Anselmo, o agitador comunista dos sargentos. Ora, nada menos que um diretor do Dops - a qual me dou o prazer de não citar o nome - afirmou, em detalhes ("Folha de S.Paulo" 31/08/2009), que tal senhor era um agente de uma potência estrangeira, infiltrado e pago para promover a "subversão" nas FFAA. Desta forma, pois, já que o fantasma foi trazido de volta à vida, a radicalização foi parte de um plano de desestabilização do governo constitucional de Goulart, e não deste contra a Constituição. Além disso, a Guerra Fria não justificou qualquer golpe na Itália, por exemplo, onde o Partido Comunista era forte e poderoso. Por fim, devemos lembrar que, nas FFAA, 884 militares foram reformados, incluindo oficiais-generais, que com certeza não subvertiam as hierarquias.
O GLOBO presta um imenso serviço à sociedade com o projeto "Memória" e merece por isso mesmo, parabéns. No entanto, as narrativas históricas são múltiplas e rigorosas.
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