quarta-feira, setembro 11, 2013

Adoção - ROBERTO DaMATTA

O ESTADÃO - 11/09

"Eu quero mesmo é ser adotado". Essa foi a frase de despedida de um amigo muito amado. Eu sabia do seu drama. Envolvera-se com uma mulher que depois de amá-lo, maltratava-o; tudo agravado por um filho adotivo mentalmente perturbado com o qual não se preocupou. A culpa era dele, era dela, era do mundo em que vivemos. Todos estamos envolvidos e alienados — ou você leitor, tem alguma dúvida? — em tudo. Enxergamos com microscópio o que ocorre com o irmão e, no entanto, somos impotentes para mudar o seu malogrado destino.

Desta tragédia anunciada — aliás, o que não é anunciado neste nosso mundo onde o fim é a única certeza, como elaborou Garcia Marques num livro extraordinário? — ficou na minha mente a adoção como projeto.

Ser adotado é um gigantesco anseio que todos temos, mas poucos manifestam. Num nível profundo, a adoção como o internamento, a filiação a um partido, a crença absoluta ou a prisão domiciliar — esse privilégio nacional — trás o benefício de não se preocupar mais com a dureza de tomar decisões. Sobretudo da decisão paradoxal de não-decidir a qual só pode ser assumida de modo legitimo quando se decide.

Regimes escravocratas têm como base a adoção involuntária definitiva de uma pessoa (o escravo) por outra (o senhor) a qual incorporava o adotado na sua pessoa jurídica, tirando-lhe a representatividade e fazendo cair sobre ela todos os deveres, sobretudo o de trabalhar — esse ato que, no Brasil, até hoje promove alergias e designa inferiores.

Uma adoção completa, arrasa a liberdade e a responsabilidade como é o caso dos menores. Uma criança, embora tendo direitos inalienáveis, não decide por si mesma e nem deve fazê-lo sob pena de irresponsabilidade dos pais.

Lembro-me de um caso assombroso. Numa família de seis filhos (duas meninas e quatro meninos) ocorreu uma manifestação. Os filhos queriam alterar a rotina da casa por meio do voto direto e secreto. Do lado dos filhos, autodenominados de "povo" e "manifestantes" estavam os amigos de colégio e um jovem tio; do lado dos pais, lidos como "opressores" e "autoridades", haviam avós dilacerados e pelo menos um juiz de direito aposentado, amigo da casa. A proposta dos rebentos era de tomar sorvete todo dia; dormir depois da meia-noite da noite e, eis o ponto chave, terem o direito de beber e fumar tanto quanto o pai. Surgiu também a proposta de jamais tomar banho frio e um dos meninos anonimamente propôs a prerrogativa de comer a atraente empregada o que deixou o pai furioso.

A eleição, deu ganho de causa aos filhos por seis a dois! Um embargo e uma "questão de ordem" impediu empregada de votar. Uma das filhas, cuja bandeira era chegar em casa mais tarde do que os irmãos, argumentou que o direito ao voto só caberia aos membros da família. O filho caçula, surfista e louco pela doméstica e pelo direito de fumar baseados a seu bel-prezar, invocou um outro embargo preliminar; o qual foi seguindo de um outro embargo e, no final, a mãe queria anular o processo reclamando da forma da urna.

A discussão evoluiu para o berro e o pai num surto de impaciência e — reza o caso — de bom-senso, pegou um cinturão e acabou com que chamou de "palhaçada parlamentar familística" porque voto não era para a casa. "Quando vocês puderem se sustentar, seus putinhos — disse ele furibundo — vocês vão poder fumar e beber à vontade!"

O caso joga luz no valor das rotinas. Se temos polaridades (homens e mulheres, velhos e jovens, crianças e adultos, animais e humanos, etc...) temos também um conjunto de intermediários. A dificuldade de decidir surge precisamente porque as diferenças promovem múltiplas perspectivas. Ademais, há dentro de cada um de nós, um infante querendo votar e um adulto cansado de fazê-lo.

O problema não é bem querer ser adotado, é impedir a adoção. Pois todos nós somos inescapavelmente adotados por alguma entidade — uma língua, uma ideologia, um momento histórico e uma coletividade, por exemplo. É impossível escapar da adoção porque ninguém entra neste teatro de horrores escolhendo livremente todos os seus papéis. Do mesmo modo, é impossível gozar da liberdade absoluta a qual, como advertia a antropóloga Margaret Mead, torna inviável um mundo sem rotinas. De fato, um sistema no qual todas as decisões seriam tomadas em assembleias e manifestações, seria imobilizado por suas próprias regras. Uma consciência absoluta leva a paralisia. Como disse muito bem o antropólogo Roberto Kant de Lima, quando um pequeno grupo impede uma multidão de ir e vir, o direito de manifestação tem que se entender com o direito de ir e vir o qual, por sua vez, também tem que se haver com outros direitos... O que não é fácil num país no qual o poderosos sempre tomam as decisões.

Na minha opinião (que não resolve nada) seria preciso retomar aquele bom senso primordial do dar, receber e retribuir que Marcel Mauss ensinou e que nós, ignorantes mas estufados na nossa santa arrogância individualista, esquecemos.

2 comentários:

sugonl disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
sugonl disse...

O casal aparentava tão bem para retornar ao nada, diziam as pessoas sobre A e B. Mas ele entendia que nada absolutamente nada dos receituários populares seriam autênticos. Para ele eram sempre ventanias que surgiam e rompiam com suas marcas de tempo. Empatia, antipatia, e mais um rosário de nomes tinham sido apenas expedientes com certa inteligência para ir tocando as coisas. Não havia jeito nem modo de adaptar-se às relações em qualquer primor, por mais consagrado que fosse a autoajuda. As faturas que viriam sempre se reportavam às coisas nunca a descobertas a olho nu. Não responderia às indagações humanas o panteísmo de Espinosa, nem o preocuparia a divisão entre corpo e alma de Descartes. Sempre ficou no plano das marcas evolutivas sobre todas as espécies. Então era Príncipe em suas concepções, porém infante na caricatura do dia a dia. Acreditava que pagava um preço elevado pela vida na terra, crucificado pelo excesso de cigarros e goles de cafés, a debulhar o imbróglio sempre presente no outro. Por si ele se segregava num caminho do fatídico mortal e com razão de sobra nem um infarto parecia acometê-lo. Para satisfazê-las nunca brochava. Já tinha pontificado que a estupidez sem tréguas pudesse ter sido o caminho verdadeiro do viver, amenizada por contenções de ludibrio inerentes a convivência. Concluíra que nem os sistemas políticos e econômicos foram suficientes para acomodar a alma humana e que concordaria com o pai da psicanálise no sentido de que a obrigação do homem só poderia ser a de suportar a vida. Nesse rumo se organizava para espigar também a rosa, como numa façanha sustentável do planeta. Consumia o seu tempo pesquisando o passado ou vários passados, e alterando-os com incomum experiência. Considerava que quando açulava certos abismos, mas sempre com provetas, conheceria, sem impaciência, da histeria de um, principalmente quando um sentido seu representasse ameaça. Isso poderia ser até o ato de trocar uma camisa elegante. Tratava cada ferida das almas ao lado como rosas frágeis. Brincava também de competições nos apelidos, e alguns se tornaram personagens seus.

Em * O Rato Branco