quarta-feira, setembro 11, 2013

De volta ao golpe - FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA

O GLOBO - 11/09

A História não é um campo de exatidões. Para muitos essa é parte fundamental de seu encanto e renovação. Para ou­tros, em busca de "objetividade" este é um aspecto desesperador do campo. Trata-se de um debate sempre aberto - pronto para releituras a partir de novos documentos, aborda­gens, metodologias e interesses. A História é, ainda, estimulada, ou calada, pelos próprios acontecimentos que serão, mais tarde, matéria- prima de suas narrativas.

Devemos, contudo, fazer uma advertência: passível de releituras constantes, as narrativas históricas são rigorosas. Há uma comunidade científica que avalia, por meios múltiplos e pú­blicos mecanismos, o seu valor heurístico. As releituras são sempre positivas e bem-vindas, porém devem ser rigorosas e a veracidade (não, "a verdade") testada e arguida.

A História do Tempo Presente, aquela que nos é imediata, dentro do alcance de nossas própri­as vidas é, por isso mesmo, ainda mais difícil, e "aberta" ao contraditório. É este o processo que se abre nas páginas do GLOBO em face à Histó­ria das ditaduras contemporâneas.

No caso brasileiro, de forma muito tardia, a História está sendo lida e relida neste momento. Seus documentos estão longe de ser totalmente expostos ao escrutínio dos historiadores ou ao interesse da sociedade. Neste contexto, de um "passado que não quer passar" O GLOBO publicou um editorial, no âmbito do projeto "Memó­ria" reconhecendo que apoiou o Golpe de 1964 e, este é o ponto fulcral, "que isso foi um erro" Aqui, aparentemente não há novidades. No campo da História, inúmeros trabalhos já apontavam, em detalhes, o apoio do GLOBO ao golpe civil-militar que derrubou o presidente constitucional, eleito, e referendado num plebiscito democrático. O novo, e bem-vindo, foi o reconhecimento de que isso foi um erro.

Ao fazer este reconhecimento o editorial esclareceu as razões: o medo de golpe de esquer­da dirigido "pela radicalização de João Goulart" o ambiente da Guerra Fria (1945-1991), a quebra da hierarquia militar e, enfim, a defesa do Congresso Nacional e da "Justiça" Aqui, mais uma vez, começam os problemas: digo mais uma vez porque a narrativa do editorial do GLOBO não é nova, mas repete versões não só da época do próprio Golpe, como ainda, é bom dizer, de alguns historiadores. No entanto, a pesquisa acadêmica, reconhecida no campo por seu rigor e tratamento das fontes, não con­; segue admitir como provado: i. que João Gou­lart tramava um golpe de Estado, justificando (como é corrente nestes casos), um (contra)golpe preventivo; ii. Que a hierarquia militar estivesse em risco, ao menos por elementos "exter­nos" à hierarquia das FFAA. Para exemplificar a "radicalização" volta-se ao "fantasma" do Cabo Anselmo, o agitador comunista dos sargentos. Ora, nada menos que um diretor do Dops - a qual me dou o prazer de não citar o nome - afirmou, em detalhes ("Folha de S.Paulo" 31/08/2009), que tal senhor era um agente de uma potência estrangei­ra, infiltrado e pago para promover a "subversão" nas FFAA. Desta forma, pois, já que o fantasma foi trazido de volta à vida, a radicalização foi parte de um plano de desestabilização do governo constitu­cional de Goulart, e não deste contra a Constitui­ção. Além disso, a Guerra Fria não justificou qual­quer golpe na Itália, por exemplo, onde o Partido Comunista era forte e poderoso. Por fim, devemos lembrar que, nas FFAA, 884 militares foram refor­mados, incluindo oficiais-generais, que com certe­za não subvertiam as hierarquias.

O GLOBO presta um imenso serviço à socie­dade com o projeto "Memória" e merece por is­so mesmo, parabéns. No entanto, as narrativas históricas são múltiplas e rigorosas. 

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