domingo, agosto 11, 2013

O escândalo do pensamento - MARCOS ROLIM

ZERO HORA - 11/08

Hannah Arendt será sempre uma inspiração, menos para aqueles que preferem o conforto dos chavões


A hipótese mais perturbadora de Hannah Arendt, apresentada em seu livro Eichmann em Jerusalém, é a de que o mal seja o resultado da ausência de pensamento. Diante do mal extremo _ aquele praticado pelos nazistas _ ela sustenta que a obra do extermínio só foi possível pelo concurso de milhares de pessoas “terrivelmente normais” e disciplinadas. É claro que, entre a turba de criminosos das polícias e dos guardas dos campos, havia fanáticos antissemitas, mas a proporção destes nunca foi maior do que a dos sádicos em qualquer sociedade. O que predominava, pelo contrário, era um tipo completamente diferente: conformista a ponto de servir a qualquer poder, interessado mais em seu bem estar pessoal do que na vitória da doutrina. Adolf Eichmann era um destes burocratas medíocres e foi na cobertura de seu julgamento em Jerusalém, em 1961, que a filósofa (que não gostava de ser chamada de filósofa) percebeu a contradição entre a dimensão do mal por ele produzido e sua pequenez como sujeito. O excepcional filme “Hannah Arendt”, de Margarethe Von Trotta, em cartaz em Porto Alegre, dá conta desta descoberta e da hostilidade com a qual as conclusões de Arendt foram recebidas por boa parte do público, a começar pela comunidade judaica. A afirmação de que Eichmann havia cometido atos monstruosos, mas que ele mesmo não era um “monstro”, como a imprensa da época o caracterizava, mas alguém incapaz de pensar _ igual a milhares de outros _ foi recebida pela crítica como uma “defesa” do criminoso. Ao mesmo tempo, o fato de Arendt _ alemã de origem judaica _ ter assinalado em seu texto que muitas lideranças judaicas da Europa ocupada colaboraram com os nazistas _ especialmente quando da organização e policiamento dos guetos _ agregou à autora dissabores e mesmo ameaças.
As posições de Arendt vinculam-se a sua compreensão do fenômeno totalitário. Para ela, nazismo e stalinismo possuem, a par de suas diferenças, o ponto comum de negação do universalismo. Para os regimes totalitários, os seres humanos não possuem os mesmos direitos. Alguns não possuem direitos ou não devem ser considerados “humanos”. O “inimigo”, de classe ou de raça, pouco importa, é sempre um inimigo extremo, o que justifica e exige medidas de extermínio. Ao lembrar disto, percebemos o quanto desta herança sobrevive, desde a popularidade do slogan “Direitos humanos para humanos direitos”, criado pela ditadura argentina e repetido, desde então, por quem não costuma pensar, até as inúmeras frases e opiniões em favor da exclusão, do sofrimento ou da morte de suspeitos ou condenados que se tornaram, infelizmente, comuns na blogosfera e mesmo na mídia tradicional.
Hannah Arendt inquieta porque é próprio do pensamento desarrumar o que, antes, parecia estabelecido e resolvido. Autora fundamental em um mundo onde o pensamento se confunde, cada vez mais, com um escândalo, Hannah Arendt será sempre uma inspiração, menos para aqueles que preferem o conforto dos chavões e da repetição à busca da verdade.

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