ESTADÃO - 12/07
Passadas duas semanas da grande mobilização do dia 20 de junho, ainda que não tenhamos um diagnóstico único e preciso sobre o que levou mais de um milhão de pessoas às ruas na simbólica quinta-feira, é possível afirmar com contundência: Dilma não tem fronteiras. Em resposta às demandas da sociedade, exerce o direito de ingerência que acredita que o seu status de chefe da Nação lhe confere. Depois da atabalhoada proposta de convocar uma Assembleia Constituinte de caráter exclusivo, transmutada na proposta de um plebiscito para a reforma política, deu uma trégua à ingerência sobre o poder legislativo para influenciar diretamente a formação dos médicos brasileiros. Em resposta aos clamores da população por melhorias na saúde, lançou o controvertido programa Mais Médicos, que obriga a todos os estudantes de medicina, de universidades públicas ou privadas, a passar dois anos trabalhando para o SUS como precondição para receber o diploma.
A ideia poderia até ser interessante, não fosse por dois, digamos, detalhes. Primeiramente, uma mudança de regras no processo de formação de profissionais de uma área tão importante quanto a da saúde não pode simplesmente ser imposta. Tem de ser discutida com a sociedade, os profissionais e as entidades do setor. A imposição sem debate induz a toda sorte de incentivos perversos, até mesmo o de que menos pessoas procurem cursos de medicina daqui para a frente. Nesse caso, Mais Médicos rapidamente se transformaria em "Menos Médicos". Em segundo lugar, se é aceitável que estudantes de medicina de universidades públicas retribuam o investimento feito pelo Estado em sua educação servindo ao público, isso não é verdade para aqueles que ingressam na profissão oriundos de faculdades privadas. Nesse caso, o sujeito pagou de seu próprio bolso para se formar e o Estado não pode ter o poder de interferir na escolha de como empregar seu conhecimento.
Imaginem se o Estado tivesse o direito de ingerência para "fins humanitários", emulando toscamente os Médicos Sem Fronteiras, em todas as profissões. Economistas só poderiam obter seus diplomas depois de passar dois anos trabalhando na Caixa, no Banco do Brasil ou no BNDES. Advogados só poderiam exercer a profissão depois de servir, por dois anos, à polícia ou aos Ministérios Públicos das diversas esferas de governo - afinal, o povo pediu mais segurança, mais agilidade nos processos judiciais, exigiu o combate à corrupção. Qualquer indivíduo com formação universitária seria forçado a passar dois anos lecionando alguma disciplina - de preferência português, matemática e ciências - no ensino fundamental das redes públicas, pois o povo quer melhorias na educação.
Não é preciso pensar muito para chegar à conclusão de que esse tipo de "solução pragmática" resvalaria na distopia dos regimes centralizadores que faliram mundo afora. É apenas uma questão de incentivos incorretamente desenhados. Simples assim. No limite, teríamos cada vez menos alunos com formação universitária para que pudessem reconquistar sua liberdade de escolha.
Não há mágica. Se a economia estiver funcionando bem, se o Estado limitar seu escopo de atuação sobre decisões privadas e se preocupar em gerir bem os recursos do governo, proporcionando um ambiente de estabilidade macroeconômica, ele irá gerar mais receitas. Com mais receitas, mais racionalidade econômica e melhorias na alocação de recursos, o Estado pode remunerar adequadamente e contratar mais professores, advogados e, quiçá, melhores economistas. Pode até atrair "mais médicos".
Cara presidente Dilma, não queremos lhe dar o direito de ingerência, não pretendemos lhe conceder o privilégio de interferir nas decisões privadas. A prerrogativa do direito de ingerência pertence aos Médicos Sem Fronteiras, a maior organização global sem fins lucrativos para a área de saúde, que se vale da ação legítima de violar soberanias para promover a ajuda humanitária. Que tipo de "ajuda humanitária" as reações mal formuladas proporcionam ao País?
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