FOLHA DE SP - 30/07
Ao que tudo indica, a África do Sul, dentro de algum tempo, irá se confrontar com as obséquias de seu herói nacional, Nelson Mandela.
É certo que a reconciliação sul-africana está longe de ser uma operação completamente bem-sucedida. Embora uma classe média negra tenha aparecido e negros possam ser encontrados na direção de certas empresas, a desigualdade econômica entre raças ainda é gritante. Casamentos mistos continuam sendo extremamente raros.
A experiência sul-africana liderada por Mandela nos deixa, no entanto, uma questão que merece longa refle-xão. O apartheid foi inven- tado por um povo, à sua maneira oprimido.
A colonização branca começou com os holandeses, na região onde hoje se encontra a Cidade do Cabo. A partir do início do século 19 e impulsionados pela luta pela posse dos recursos naturais sul-africanos, os britânicos se estabeleceram no país, começando um longo processo de conquistas que culminou na Guerra dos Bôeres, no final do mesmo século. Nesta guerra entre britânicos e principalmente holandeses (africâneres), apareceram os primeiros campos de concentração nos quais toda uma população foi alvo sistemático de encarceramento.
Foi esse povo oprimido pela pela experiência do domínio britânico e pelos campos que, logo após a Segunda Guerra Mundial, alimentado por um nacionalismo vivenciado como defesa contra a humilhação, proclamou a República da África do Sul, instaurando o regime do apartheid. Ou seja, a experiência da opressão não levou à alguma forma de consciência social do trauma da colonização. Ela levou à justificação do direito de defender seu povo, custe o que custar, usando o pior sistema ideológico possível.
Talvez tenha sido a consciência do ciclo interminável no qual a vítima de outrora, animada pelo ressentimento, se transforma no próximo agressor que levou Mandela a procurar a reconciliação que acabou por ser implementada. A África do Sul tinha tudo para entrar em uma verdadeira guerra civil, mas ao menos isto não ocorreu.
Essa reconciliação foi, entretanto, baseada em uma ideia fundamental: só é possível perdoar quem reconhece seu crime. A experiência social do perdão exigiu, em contrapartida, que os responsáveis por atos racistas pedissem perdão e confessassem seus crimes diante das vítimas ou de seus familiares.
Isso não significa que a justiça foi feita, mas implica, ao menos, que o solo mínimo da anistia é a culpabilização social de quem praticou crimes contra a humanidade. Por isso, quando Mandela morrer, o Brasil também merecerá parar e pensar.
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